Danilo Gallardo Correia
Trata-se de uma lei pouco lembrada no meio jurídico, mas que foi criada para desburocratizar o procedimento de registro dos imóveis em nome da União, tanto aqueles cujo domínio decorre de lei quanto aqueles cujo domínio decorre do tempo de ocupação (também conhecido como "usucapião administrativo").
O setor elétrico tem vivido nos últimos anos uma dúvida que nada tem a ver
com as suas tarifas ou os seus megawatts. Trata-se do "gasto de
energia"...com uma questão imobiliária.
Antes de adentrarmos no problema, vamos entender, em linhas gerais, como se
formaram as primeiras concessões de serviço público no setor elétrico.
Tomemos como exemplo uma concessão de geração de energia elétrica para a
construção e exploração de uma usina hidrelétrica, o que ocorreu amplamente em
nosso país, principalmente entre as décadas de 50 e 80. Via de regra, para a
aquisição dos imóveis necessários ao desenvolvimento de um projeto como esse,
adotava-se o seguinte procedimento: (i) o Poder Executivo emitia um decreto
declarando de utilidade pública certo perímetro em que seria formada a usina
hidrelétrica e autorizava a respectiva empresa concessionária (à época, em sua
maioria, estatal) a desapropriar tais áreas judicialmente, se necessário; e
(ii) a concessionária, por sua vez, imitia-se na posse do imóvel e, ao final da
ação expropriatória, tendo pagado o preço da indenização, recebia a carta de
adjudicação (título para a transferência do domínio do imóvel) em seu nome,
levando-a a registro perante o cartório de registro de imóveis competente.
O resultado disso foi que os imóveis do setor elétrico foram sendo
registrados em nome das concessionárias, como autênticas proprietárias do ponto
de vista registral/imobiliário, como se não houvesse o amanhã.
Ocorre que o amanhã chegou, e essas concessões do passado, que tinham como
prazo de vigência 20 ou 30 anos, por exemplo, têm acabado. Diante disso, surgiu
um dilema de natureza imobiliária: para quem e a que
título deveria ser transferido o domínio dos imóveis afetados à
concessão, já que não faz sentido mantê-los em nome das antigas concessionárias
de energia?
Desde 2014, com o fim das primeiras concessões, a comunidade jurídica tem se
debruçado e discutido as respostas. A primeira delas (para quem deve ser
transferido o domínio?) é intuitiva e praticamente unânime: para a
União, uma vez que (i) o art. 20, VIII, da Constituição
Federal, dispõe que são bens da União os "potenciais de energia hidráulica"; (ii)
o art. 21, XII, b, também da Constituição Federal, estabelece que compete à
União explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão,
"os serviços e
instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de
água"; e (iii) todos os contratos de concessão do setor
elétrico, seguindo o disposto na lei
8.987/95, preveem a "reversão"
dos bens servíveis ao Poder Concedente (ou seja, à União), quando extinta a
concessão.
Já a segunda resposta (a que título deve ser transferido o domínio dos
imóveis servíveis à União?) não é tão simples, e a demora quanto à sua
definição gera risco para as concessionárias (tanto para as antigas quanto para
as novas) em alguns temas relevantes1.
Considerando que não são aplicáveis os institutos e
conceitos da venda e compra, doação, permuta ou dação em pagamento, para a
transferência de propriedade dos imóveis servientes das antigas concessionárias
para a União (e quaisquer dessas modalidades ainda trariam possíveis custos
tributários expressivos), a maior parte dos juristas tem defendido, até o
momento, que a solução passaria pela alteração do art. 167 da lei
6.015/73 (lei de registros públicos), para a inclusão da hipótese de
registro da "reversão" ao Poder Concedente dos imóveis vinculados à
concessão de serviço público.
Porém, vislumbramos dois potenciais obstáculos a essa ideia, a saber:
(i) possível resistência no meio acadêmico e operacional imobiliário (entre
juristas, notários e registradores) quanto à aceitação da "reversão" como
forma de aquisição de propriedade, na medida em que o conceito pressupõe a
existência de um título prévio, com cláusula resolutiva, que, uma vez operada,
implica o retorno do domínio do imóvel ao antigo proprietário, em sintonia com
o princípio da continuidade registral, ao passo que, na realidade, a União
jamais foi proprietária do imóvel (ao menos formalmente, nos respectivos
registros imobiliários) e nunca houve título imobiliário prévio com cláusula
resolutiva entre ela e a antiga concessionária. Logo, o emprego da
"reversão" como forma de transferência da propriedade dos imóveis das
antigas concessionárias para a União destoaria das bases do direito imobiliário
e registral; e
(ii) ainda que ao final se mostre exitosa a proposta de alteração da LRP, é
provável que todo o processo legislativo dure um tempo maior que o desejável
para a solução do tema, em especial se levarmos em conta o atual cenário de
incerteza das pautas políticas dos próximos anos no país.
A nosso ver, há uma solução mais adequada e célere para que a propriedade
dos imóveis vinculados à concessão deixe de estar em nome das antigas
concessionárias e passe ao domínio da União: a lei 5.972, de 11 de dezembro de
1973 ("lei
5972/73"), que "regula
o procedimento para o registro da propriedade de bens imóveis discriminados
administrativamente ou possuídos pela União".
Trata-se de uma lei pouco lembrada no meio jurídico, mas que foi criada para
desburocratizar o procedimento de registro dos imóveis em nome da União, tanto
aqueles cujo domínio decorre de lei quanto aqueles cujo domínio decorre do
tempo de ocupação (também conhecido como "usucapião administrativo").
Ambas são hipóteses de natureza declaratória, conforme dispõe o art. 1º da lei
5972/73: "Art. 1º O
Poder Executivo promoverá o registro da propriedade de bens imóveis da União: I
– discriminados administrativamente, de acordo com a legislação vigente; II –
possuídos ou ocupados por órgãos da administração Federal e por unidades
militares, durante vinte anos, sem interrupção nem oposição".
Sobre a hipótese prevista no inciso "I", não há dúvida de que os
imóveis servíveis às concessões consistem em bens públicos de uso especial,
cujo domínio da União decorre da legislação vigente (Constituição Federal e lei
8.987/95, conforme aqui já exposto). E, sobre a hipótese prevista no inciso
"II", é inegável que a posse indireta e o animus domini da
União se mostram presentes no que tange a esses imóveis, ainda que a
propriedade tenha sido registrada em nome das antigas concessionarias, pois são
pressupostos das próprias concessões outorgadas pelo Poder Concedente e da
"reversão" prevista em lei. Logo, basta a comprovação de que os
imóveis estão afetados à concessão por mais de 20 anos, para que tenha lastro o
registro do domínio em nome da União nesse último caso.
O procedimento para a conclusão do registro do domínio em nome da União é
eminentemente administrativo. Em suma, inicialmente, deve haver requerimento da
União dirigido ao oficial do registro de imóveis instruído com decreto do Poder
Executivo que discrimine os imóveis, o qual, atualmente, pode ser substituído
por uma portaria emitida pela secretaria de patrimônio da União (SPU)2 (art.
2º da lei 5972/73). Em seguida, dentro de 15 dias a contar do protocolo do
referido requerimento da União, o oficial de registro deve registrar o domínio
da União, caso não exista transcrição ou matrícula para o imóvel, ou suscitar
dúvida ao juiz Federal competente, caso o imóvel conste em nome de outrem (art.
3º da lei 5972/73). A dúvida, então, será processada e decidida pelo juiz
Federal, podendo o magistrado ordenar a notificação de terceiro, para impugnar
o pedido de registro em nome da União (art. 4º da lei 5972/73). Ao final, se a
dúvida for julgada improcedente, o oficial de registro promoverá o registro do
imóvel em nome da União, declarando, na coluna das anotações, que a dúvida se
houve como improcedente e arquivando-se o respectivo processo (art. 5º da lei
5972/73).
No caso específico que ora debatemos, considerando que os imóveis se
encontram registrados quase que na totalidade em nome das antigas
concessionárias, talvez seja possível afastar o procedimento de suscitação de
dúvida para esses imóveis, mediante declaração de ciência e anuência da antiga
concessionária3 reconhecendo a propriedade da União, documento
esse que seria anexado ao pedido de registro ao oficial (art. 2º, caput, da lei 5972/73).
Como não poderia deixar de ser, é recomendável que a sugestão acima seja
amplamente discutida e alinhada com os registradores (ANOREG e IRIB). E, mesmo
que ao final não se entenda viável tal alternativa, ou seja, se o procedimento
de dúvida for levado adiante (submetido ao juiz Federal), não vislumbramos
motivos para que a dúvida seja julgada procedente. Logo, inevitavelmente, a
decisão judicial será favorável ao registro do domínio dos imóveis em nome da
União.
Assim que os imóveis atinentes à concessão estiverem registrados em nome da
União perante os registros imobiliários, é recomendável que as novas
concessionárias celebrem com a ANEEL um contrato de concessão de uso de
bem público4, listando os mesmos imóveis discriminados no
decreto ou portaria emitida para atendimento do art. 2º da lei 5972/73, de modo
a formalizar a transferência da sua posse e uso em favor da nova concessionária
pelo mesmo prazo de vigência da sua concessão .
Como se vê, o assunto aqui tratado envolve muitos conceitos e discussões
jurídicas dignas de serem exploradas em um livro. Este artigo, por óbvio, não
se propôs a esgotar o tema, mas sim a abordar a questão de forma bastante
resumida e didática, visando contribuir para que as antigas e as novas
concessionárias encontrem o melhor caminho junto às autoridades competentes
(União, ANEEL, SPU e registradores), para a solução do problema.
Ao menos daqui, de onde enxergamos, quem ilumina o fim do túnel é a lei 5.972/73.
__________
1 A
situação atual, em que as antigas concessionárias permanecem como proprietárias
dos imóveis afetados à concessão, ocasiona diversos problemas para elas e para
as novas concessionárias, a saber: (i) possíveis obstáculos à regularização
imobiliária e operacional do empreendimento elétrico (CCIR, CAR, AVCB,
autorizações ambientais etc.) para as novas concessionárias; (ii) possível
responsabilização ambiental das antigas concessionárias por eventuais infrações
cometidas por terceiros ou mesmo pelas novas concessionárias (obrigação propter
rem); (iii) dificuldade de controle acerca de notificações de terceiros e
citações judiciais que envolvam as propriedades não transferidas, entre outras
dificuldades de natureza tributária e contábil relativas aos imóveis.
2 Cf.
competência delegada pelo art. 3° da portaria
54, de 22 de fevereiro de 2016, do Ministério do Planejamento, Orçamento e
Gestão.
3 Não
podemos desprezar a existência de casos em que os imóveis permanecem em nome de
terceiros perante os registros imobiliários, seja porque a antiga
concessionária não promoveu o processo de desapropriação pertinente (gerando
apossamento administrativo), seja porque a desapropriação foi promovida, porém
o título aquisitivo (carta de adjudicação ou escritura) não foi levado a
registro pela antiga concessionaria. Para esses casos (imóveis em nome de
terceiros), o procedimento de suscitação de dúvida será inevitável.
4 Entendemos
que o contrato de concessão de uso de bem público poderia constar como anexo do
contrato de concessão de serviço público, tal como ocorre em contratos de
concessão do setor rodoviário.
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*Danilo Gallardo Correia é sócio do escitório Madeira, Valentim & Gallardo Advogados.
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