No
final do milênio, mais precisamente na última década, além dos loteamentos
ou desmembramentos implantados conforme as regras da “Lei Lehmann”
(Lei 6.766/79) e dos condomínios horizontais implantados com observância
do Decreto-Lei 271/1967, em combinação com a Lei Federal 4.591/1964 e com o
Código Civil, houve a proliferação de outras modalidades, clandestinas ou
irregulares, de parcelamento do solo urbano como os “loteamentos fechados”,
genericamente conhecidos como condomínios, e os “condomínios de lotes”, os
quais possuem características especiais que os diferem dos convencionais.
Loteamentos fechados
Estes pseudos loteamentos fechados cumpriram, em regra, os comandos da Lei
6.766/79. O projeto foi apresentado ao município, e os documentos, levados ao
Registro de Imóveis, obedecendo aos ditames da Lei de Parcelamento do Solo, isto
é, um loteamento aberto ao público em geral, só que com desenhos,
características e/ou configurações in loco que facilitem seu
posterior fechamento, com simples levantamento de muros ou alterações nas
divisas[1].
Após a aprovação do projeto do loteamento pelo município e, quando o caso,
pelo órgão ambiental, com seu registro no Serviço de Registro de Imóveis,
forma-se uma associação de moradores, a qual também costuma ser constituída
antes ou durante a aprovação do loteamento.
Esta associação de moradores, depois de inscrita no registro civil, requer à
municipalidade a autorização condicionada do fechamento, com concessão de uso
gratuita das áreas públicas aos moradores, no máximo com um suposto acesso
controlado dos demais citadinos. Entretanto, dificilmente estes poderão acessar
tais locais sem uma justificativa, como a de ir visitar algum morador[2].
As vias e praças públicas internas ao residencial passam a ser mantidas pela
associação de moradores, mas esta, geralmente, não paga Imposto Predial e
Territorial Urbano (IPTU) sobre a área pública que utiliza em caráter
privativo, nem mesmo há a licitação para concessão dessas áreas públicas à
associação. A concessão é geralmente efetuada por prazo indeterminado e via
decreto municipal, este baseado em uma lei genérica que autoriza essas
concessões para todos os empreendimentos similares do município, com menção à
possibilidade de revogação em caso de descumprimento de condicionantes, como a
obrigação de permitir o ingresso de toda e qualquer pessoa que se identificar
na portaria[3].
O problema é que esses fechamentos de loteamentos praticavam verdadeira
privatização de espaços públicos, com restrição ao direito constitucional de ir
e vir, concessão gratuita de uso de ruas e praças de uso comum do povo, com
obrigatoriedade de o cidadão se identificar para particulares (servidores da
portaria do “condomínio”). Esses “seguranças”, muitas vezes, utilizam arma de
fogo para fins de supostamente ofertar serviço de segurança aos moradores,
não raro sem autorização da Polícia Federal.
Paga-se uma taxa condominial, como forma de contraprestação aos serviços de
manutenção de áreas comuns do residencial que foi fechado ao acesso público e
se tornou intramuros, bem como pelos demais serviços de coleta de resíduos
sólidos, segurança interna, portaria, entrega de correspondência, manutenção de
praças e jardins, os quais passam a ser executados ou custeados pela
associação[4].
Quando da formação do loteamento, a situação de concordar ou não com o
pagamento da taxa condominial à associação, em geral, é facilmente resolvida,
pois se houver discordância basta o pretendente não adquirir o lote e deixar de
se filiar à associação, escolhendo outro empreendimento imobiliário para
comprar e ir morar.
O problema surgia quando havia pretensão de se desassociar e parar de pagar
a “taxa condominial” à associação de moradores. Nessas circunstâncias, face à
previsão constitucional de que ninguém está obrigado a se associar ou manter-se
associado (artigo 5º, XX, da CF)[5], nossos tribunais vinham decidindo
não ser possível compelir o adquirente/associado a continuar com o pagamento
dessa “taxa condominial”[6].
Contudo, a ausência de pagamento por serviços desfrutados seria uma espécie
de “enriquecimento sem causa” (recebimento de prestação de serviços sem
contrapartida financeira). Nesse diapasão, incorreta a expressão
“enriquecimento ilícito”, pois não é ilegal ou inconstitucional recursar-se a
se manter associado. Por tais razões, jurisprudência antiga e/ou minoritária
entendia haver a obrigação de pagamento[7], baseadas no princípio do não
enriquecimento sem causa.
A questão teve, em 17 de fevereiro de 2014, repercussão geral reconhecida
pelo Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário 695.911, o qual
ainda está pendente de julgamento.
Com a propriedade que lhe é peculiar, defendia, antes do advento da Lei
13.465/17, José Carlos de Freitas que “os Municípios não podem autorizar essa
forma de ‘loteamento condominial’. Lei municipal que preveja ou regule sua
implantação contamina o ato de aprovação de flagrante ilegalidade, porque o
Município não tem competência legislativa em matéria de condomínio”. A posição
do autor era a mesma de Diógenes Gasparini[8].
Condomínio de lotes
Relativamente aos condomínios, segundo exigências da Lei Federal 4.591/1964,
estes deveriam ter edificação vertical ou horizontal nos lotes a serem
alienados, o que restringia o parcelamento e a institucionalização de
verdadeiros condomínios, ante a necessidade de tais construções de casas ou
apartamentos nos lotes. Nestes casos, não há destinação de áreas públicas, a
área é dividida entre os proprietários, com partes exclusivas, e partes ideais
de uso comum dos condôminos. E as portarias, guaritas e restrição de acesso não
ensejavam questionamento, pois a área interna é de propriedade exclusiva dos
condôminos.
Importante anotar que mesmo antes da nova Lei da Reurb já havia quem
defendesse a legalidade de condomínio de lotes sem edificações. Sustentava-se
que a inexistência de lei federal prevendo especificamente o condomínio
horizontal de lotes podia ser superada por lei municipal prevendo essa
figura. Nesse sentido, confira-se:
Como não existe regulamentação expressa na lei federal a respeito do
condomínio horizontal de lotes — trata-se de construção doutrinária, já
acolhida por alguns Tribunais— é preciso, como leciona GILBERTO VALENTE DA
SILVA (Consultor Jurídico do IRIB), que “… as normas de direito urbanístico do
município contemplem a possibilidade administrativa da aprovação do projeto,
para ser implantado segundo as normas condominiais[9].
Em resumo, legalmente, o condomínio deveria ter edificações de apartamentos
ou casas e o loteamento não deveria ser fechado com guarita e controle de
acesso, pois a restrição de locomoção da população, nas vias e praças públicas
criadas pelo loteamento, seria indevida.
A regularização do “loteamento de acesso controlado”, da taxa
condominial e do “condomínio de Lotes” pela Lei da Reurb (?)
Ocorre que o mercado imobiliário, há muito tempo, reivindicava a regularização
legal destas situações para permitir essas novas modalidades de parcelamento
do solo. Estes parcelamentos, irregulares ou clandestinos, do solo, sob as
formas de “condomínio de lotes” ou “loteamento fechado”, agora são passíveis de
regularização em virtude da Lei 13.465/17, que disciplinou vários aspectos do
Direito Urbanístico, introduzindo alterações na Lei 6.766/79 e no Código Civil.
O artigo 78 da Lei 13.465/17 introduziu o “loteamento de acesso
controlado” no ordenamento territorial brasileiro, ao incluir o parágrafo
8º ao artigo 2º da Lei 6.766/79, nos seguintes termos:
“Constitui loteamento de acesso controlado a modalidade de loteamento,
definida nos termos do § 1º deste artigo, cujo controle de acesso será
regulamentado por ato do poder público Municipal, sendo vedado o impedimento de
acesso a pedestres ou a condutores de veículos, não residentes, devidamente
identificados ou cadastrados”.
Assim, embora tenha sido limitado o livre acesso de pedestres ou ocupantes
de veículos nos loteamentos posteriormente fechados, diante da necessidade de
prévio cadastramento e identificação, este não poderá ser proibido. Com isso,
acreditamos que, embora por vias tortuosas e indesejáveis (via medida
provisória, depois convertida em lei, hoje contestada por meio das ADIs 5.771,
5.787 e 5.883, e sem debates com a sociedade civil), o legislador conseguiu
conciliar o interesse de segurança dos habitantes desses empreendimentos com os
interesses da sociedade em não ter restrições de acesso às áreas públicas.
Para aperfeiçoar essa cedência recíproca de princípios constitucionais
(segurança dos moradores e acesso público aos parcelamentos de solo com
fechamento do loteamento), o legislador previu a possibilidade de vedar o
cercamento com muros ao incluir o parágrafo 4º ao artigo 4º da Lei
6.766/79 (artigo 78 da Lei 13.465/17), nos seguintes termos:
§ 4º No caso de lotes integrantes de condomínio de lotes, poderão ser
instituídas limitações administrativas e direitos reais sobre coisa alheia em
benefício do poder público, da população em geral e da proteção da paisagem
urbana, tais como servidões de passagem, usufrutos e restrições à construção de
muros” (NR).
A exemplo do que foi feito com o fechamento do loteamento, o legislador, por
meio do artigo 78 da Lei 13.465/17, introduziu o artigo 36-A à Lei
6.766/79, de maneira a evitar a incidência da regra constitucional de que
ninguém está obrigado a se associar ou manter-se associado (artigo 5º,
XX), equiparando a atividade da associação de condomínio residencial à
atividade de administração de imóveis. Dessa forma, em tese, foi contornada a
celeuma existente sobre a cobrança da taxa condominial para aqueles moradores
que não mais se mantiverem associados, de maneira que estes, ainda assim,
ficarão com a incumbência de pagar pelo recebimento dos serviços prestados ou
colocados à sua disposição, sob pena de ser considerado enriquecimento sem
causa.
A Lei 13.465/17, conhecida como Lei da Reurb, em seu artigo 58, instituiu
também o “condomínio de lotes”, que foi incluído por meio do
artigo 1.358-A ao Código Civil, o qual tem a seguinte redação:
Art. 1.358-A. Pode haver, em terrenos, partes designadas de lotes que são
propriedade exclusiva e partes que são propriedade comum dos condôminos
§ 1º A fração ideal de cada condômino poderá ser proporcional à área do solo
de cada unidade autônoma, ao respectivo potencial construtivo ou a outros
critérios indicados no ato de instituição.
§ 2º Aplica-se, no que couber, ao condomínio de lotes o disposto sobre
condomínio edilício neste Capítulo, respeitada a legislação urbanística.
§ 3º Para fins de incorporação imobiliária, a implantação de toda a
infraestrutura ficará a cargo do empreendedor.
Dessa maneira, acreditamos que, doravante, se confirmados pelo Supremo
Tribunal Federal os dispositivos da Lei da Reurb, ao julgar as ADIs 5.771,
5.787 e 5.883, a questão deverá ser pacificada no sentido de se permitir o
condomínio de lotes, o loteamento de acesso controlado, bem como a cobrança da
taxa condominial, de maneira a se permitir novos “loteamentos fechados” e
regularização dos anteriormente existentes.
Entretanto, a lei da Reurb, em tese, ofende a dispositivos constitucionais,
sendo introduzida por meio de medida provisória (sem haver relevância e
urgência) e sem debates com a sociedade civil por meio de audiências públicas.
Ela alterou outras 11 leis, oficializando desconformidades que agravarão ou
perpetuarão problemas urbanísticos e ambientais, os quais se esperava fossem
corrigidos pelo poder público em algum momento, para que as cidades possam
efetivamente cumprir com suas funções sociais.
[1] CASTANHEIRO, Ivan Carneiro.
Direito urbanístico e direito à moradia, “in” VITORELLI, Edilson (Org.). Manual
de Direitos Difusos, Ed. Juspodivm, 2018, p. 868.
[2] CASTANHEIRO, Ivan Carneiro.
Direito urbanístico e direito à moradia, “in” VITORELLI, Edilson (Org.). Manual
de Direitos Difusos, p. 868/9.
[3] CASTANHEIRO, Ivan Carneiro. Direito
urbanístico e direito à moradia, “in” VITORELLI, Edilson (Org.). Manual
de Direitos Difusos, p. 869.
[4] CASTANHEIRO, Ivan Carneiro.
Direito urbanístico e direito à moradia, “in” VITORELLI, Edilson (Org.). Manual
de Direitos Difusos, p. 869.
[5] Art. 5º, XX - “ninguém poderá ser
compelido a associar-se ou a permanecer associado”.
[6] “CIVIL. LOTEAMENTO. ASSOCIAÇÃO DE
MORADORES. COBRANÇA DE CONTRIBUIÇÃO POR SERVIÇOS PRESTADOS. O proprietário de
lote não está obrigado a concorrer para o custeio de serviços prestados por
associação de moradores, se não os solicitou. Recurso especial conhecido e
provido”. STJ, 3ª Turma, REsp 444.931, Rel. Ari PARGENDLER, 28 ago.2003, v.u.
[7] Apelação Cível nº 256.210.2/9, São
Paulo, 14ª Câm. Civil do TJSP, j. em 04/04/95, v.u., Rel. Des. Ruiter Oliva.
In: RT 718/133; no mesmo sentido, admitindo a cobrança e a existência de
convenção a respeito da manutenção dos serviços, Apel. Cível nº 11.863/93, 6ª
Câm. do TARJ (Cível), j. 16/11/93, Rel. Juiz Nilson de Castro Dião. In: RT
706/161.
Apelação Cível nº 7.847/96, Rio de Janeiro, 2ª Câm. Cível, j. em 07/01/97,
v.u., Rel. Des. Luiz Odilon Gomes Bandeira.
Apelação n º 315.141, Jundiaí, 4ª Câm., j. em 05/10/83, v.u., Rel. Juiz Paulo
Henrique. Tais decisões foram colacionadas no excelente trabalho de José Carlos
de Freitas, denominado “Loteamentos fechados: O papel do Ministério Público, p.
23. Disponível em <http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/cao_urbanismo_e_meio_ambiente/Congressos_eventos/18_congresso_meio_ambiente/18_teses/tese_Dr_%20Freitas.doc>.
Acesso em 05 set. 2015.
[8] Loteamento em Condomínio. RDP,
vol. 68, out./dez. 1983, p. 319, “apud” FREITAS, JOSÉ CARLOS. Loteamentos
fechados: O papel do Ministério Público, p. 9.
[9] ERPEN, Décio Antônio; PAIVA, João
Pedro Lamana; MEZZARI, Mario Pazutti. Condomínio Horizontal de Lotes:
Disponível em:
https://www.conjur.com.br/2018-nov-29/mp-debate-regularizacao-loteamentos-fechados-condominios-lotes