O ser humano não sobrevive sozinho, é de sua natureza viver na companhia
de outras pessoas. Essa é a razão pela qual as famílias são constituídas.
Ao longo dos
anos, a forma de constituição da família evoluiu. Nos primórdios da organização
das sociedades, as famílias eram consideradas apenas em seu aspecto
consanguíneo. Era o laço de sangue que estabelecia os vínculos de parentesco e
de filiação.
Desde a
antiguidade, entretanto, havia uma preocupação com aqueles que não podiam ter
filhos naturalmente. Na Grécia, o instituto era conhecido como forma de
manutenção do culto familiar pela linha masculina1. Em Roma, a ideia se difundiu e ganhou contornos mais precisos, tendo a
adoção a principal característica de proporcionar prole civil àqueles que não a
tinham de origem biológica2.
No Brasil, a
primeira previsão a respeito do tema ocorreu no Código Civil de 1916, o qual
reconhecia apenas duas formas de parentesco: o natural, oriundo do vínculo
consanguíneo, e o civil, resultante da adoção3.
A
socioafetividade como forma de estabelecer vínculo de filiação surgiu em nosso
ordenamento muito tempo depois. Foi a doutrina e a jurisprudência que iniciaram
o movimento no sentido de reconhecer a afetividade como energia formadora de um
vínculo familiar que poderia e deveria ser protegido juridicamente.
Mas foi somente
com a promulgação da Constituição Federal de 1988, ao consagrar o princípio da
dignidade da pessoa humana4 e a
proteção da família pelo Estado5, que o direito pátrio passou a dar outro enfoque às novas formas de
constituição de família e filiação.
Embora sem
respaldo legislativo explícito, a filiação socioafetiva pôde encontrar guarida,
a partir do ano de 2003, na expressão "outra origem" prevista no
artigo 1.593 do Código o Civil de 20026. O dispositivo traz a possibilidade de se estabelecer parentesco em
origem diversa da natural (sanguínea) e da civil (adoção), dando suporte mais
concreto à tutela jurisdicional da socioafetividade, com base na chamada posse
do estado de filho. Foi nesse sentido que se sedimentou o Enunciado 103 da I
Jornada de Direito Civil7.
Como se vê, ao
contrário da adoção que sempre encontrou regulação expressa em nosso
ordenamento, a filiação socioafetiva até os dias atuais não tem regramento
específico na lei civil em sentido estrito. Hoje, o que se tem é a normatização
do instituto do reconhecimento da filiação socioafetiva pelo Conselho Nacional
de Justiça, com a edição do Provimento nº 63, de 14 de novembro de 2017, que
foi alterado pelo Provimento nº 83, de 14 de agosto de 2019.
Apesar das
diferenças no âmbito de sua positivação, os institutos da adoção e da filiação
socioafetiva ostentam entre si uma série de características em comum. Ambas são
formas irrevogáveis de constituir família por meio de filiação não biológica,
ambas gozam da proteção constitucional da igualdade entre os filhos,
preconizada no artigo 227, §6º, da CF8, assim como as duas podem se sobrepor e prevalecer em relação ao vínculo
biológico, com fulcro no princípio da afetividade e no princípio do melhor
interesse do menor.
Os efeitos
jurídicos de uma e de outra estrutura também guardam bastante similaridade.
Ambos pressupõem a declaração e o reconhecimento do estado de filho, assim como
o ingresso desse fato no registro civil de nascimento, ficando assegurado o
estabelecimento formal da relação de parentesco e a adoção do sobrenome do
adotante ou do reconhecente, pelo adotado ou reconhecido. O reconhecido
extrajudicialmente, a propósito, precisa ser pelo menos 16 (dezesseis) anos
mais novo que o reconhecente, assim como ocorre na adoção. Ambos os institutos,
ademais, geram efeitos de ordem familiar e sucessória, como o exercício do
poder familiar, os deveres de guarda e sustento, e os direitos de visitas e de
herança.
Tantos pontos
em comum, todavia, não devem confundir o operador do direito na aplicação das
regras de um e de outro instituto, pois alguns de seus efeitos são
consideravelmente distintos.
Destaque-se, em
primeiro lugar, o fato de que a adoção só se realiza na esfera judicial, pois o
vínculo da adoção apenas pode ser declarado por sentença. Diferente é a
filiação socioafetiva, que tanto pode ser reconhecida judicialmente quanto
extrajudicialmente, diretamente nos cartórios de registro civil do país.
Se realizado em
cartório, o reconhecimento da filiação socioafetiva pode ocorrer somente com
relação a pessoas maiores de 12 (doze) anos de idade, ao passo que a adoção não
encontra qualquer limite de idade, podendo ocorrer até mesmo com relação a
indivíduos recém-nascidos.
Esse, aliás, é
outro ponto importante na diferenciação dos institutos: a filiação socioafetiva
exige que uma situação fática prévia esteja concretizada para que o vínculo
possa ser estabelecido. Isso porque, conforme já decidido pelo Supremo Tribunal
Federal9, três são os requisitos para o reconhecimento
da posse do estado de filho e, consequentemente, a filiação dessa natureza: 1)
ser tratado como filho pelo pai (tractatio),
2) usar o nome da família (nominatio),
e 3) gozar do reconhecimento de sua condição de descendente pela comunidade (reputatio).
Para a adoção,
outros são os requisitos legalmente previstos. Nesse contexto, o Estatuto da
Criança e do Adolescente exige apenas que a adoção seja precedida de estágio de
convivência (cujo prazo máximo é de 180 dias), nas hipóteses em que o adotando
já não estiver sob a tutela ou a guarda legal do adotante10.
De qualquer
forma, em um e em outro instituto, identifica-se a reciprocidade como aspecto
comum e bastante relevante. O filho não pode ser reconhecido sem que nutra o
mesmo sentimento de afeto em relação ao reconhecente. Na adoção, o adotando
maior de 12 (doze) anos precisa consentir com a medida e, mesmo com relação
àquele que ainda não atingiu essa idade, haverá um acompanhamento por equipe interprofissional
que avaliará a conveniência da colocação em família substituta, também
considerando o viés do adotado.
A filiação
socioafetiva, de outro turno, não pressupõe a extinção do vínculo biológico. Ao
contrário, na maioria das vezes, ambos os vínculos conviverão lado a lado,
ensejando inclusive o surgimento da multiparentalidade. Isso ocorrerá nas
situações em que o vínculo socioafetivo envolver indivíduos que já tenham pai e
mãe biológicos conhecidos. Tal não se verifica, contudo, na adoção, uma vez
que, não sendo ela unilateral, o vínculo com os pais biológicos sempre
desaparecerá (ECA, Art. 41).
Importantes
efeitos registrais decorrem desse fato. O reconhecimento da filiação
socioafetiva ingressa no Registro Civil das Pessoas Naturais como um ato de
averbação no registro de nascimento do indivíduo reconhecido. Já a adoção
enseja a prática de dois atos: um de averbação de cancelamento do assento de
nascimento originário da pessoa adotada, e outro de registro propriamente dito,
no qual se inscreverá no Livro "A" do RCPN competente, um novo
assento de nascimento, estabelecendo a nova relação de parentesco civil, com o
novo nome do adotado e com os dados do adotante ou dos adotantes como seus pais.
A certidão de
nascimento expedida após a prática de desses atos terá teor distinto em cada
caso. Aquela decorrente do reconhecimento de filiação socioafetiva conterá o
nome ou os nomes dos pais biológicos, junto com o nome do pai e/ou da mãe
socioafetiva. O reconhecido poderá ter em seu documento o nome de até 8 (oito)
avós.
Assim, ainda
que a lei 8.560/1992 estabeleça que não se fará, tanto no registro de
nascimento, quanto nas respectivas certidões, referência à natureza da filiação11, o simples fato de se ter assentada a
multiparentalidade já evidencia que uma daquelas relações de filiação não é
biológica e sim socioafetiva. Tal não ocorre na adoção, pois o ordenamento
pátrio permite que a adoção seja feita por no máximo duas pessoas, desde que
sejam casadas ou que mantenham união estável entre si12.
Aliás, neste
contexto, saliente-se que nas hipóteses de reconhecimento de filiação
socioafetiva que tramitem pela via extrajudicial, somente se permite a inclusão
de um ascendente socioafetivo do lado paterno ou materno13. Tal óbice não se verifica quando o pleito é
veiculado na via judicial e, conforme já explanado, nos casos de adoção.
Outro relevante
efeito registral, que aqui merece destaque, é o fato de que a adoção permite a
modificação do prenome do adotado, o que não ocorre no reconhecimento de
filiação socioafetiva. Neste, o nome do reconhecido até poderá ser alterado,
mas apenas para incluir o sobrenome do reconhecente, sem a possibilidade de
qualquer outra alteração, como por exemplo a exclusão de algum outro sobrenome
que ele tenha (o que somente seria possível pleitear na via judicial).
Neste diapasão,
diante de tantos elementos capazes de ensejar a confusão entre uma e outra
estrutura jurídica, é de grande relevância que o operador do direito se atente
para os efeitos e as finalidades buscadas pelos interessados. A depender deles,
uma ou outra medida deve ser escrutinada, um ou outro pleito deve ser
intentado. Em ambas as situações, todavia, jamais se deverá afastar dos vetores
norteadores desses institutos: a dignidade da pessoa humana, o melhor interesse
do menor e a ampla proteção da entidade familiar.
Referências
BRASIL. Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Disponível aqui. Acesso
em: 05 set. 2020.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível aqui.
Acesso em: 05 set. 2020.
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras
providências. Disponível aqui. Acesso
em: 05 set. 2020.
BRASIL. Lei nº 8.560, de 29 de dezembro de 1992. Regula a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do
casamento e dá outras providências. Disponível aqui. Acesso
em: 05 set. 2020.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível aqui.
Acesso em: 05 set. 2020.
CONSELHO
NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento nº
63, de 14 de novembro de 2017. Institui
modelos únicos de certidão de nascimento, de casamento e de óbito, a serem
adotadas pelos ofícios de registro civil das pessoas naturais, e dispõe sobre o
reconhecimento voluntário e a averbação da paternidade e maternidade
socioafetiva no Livro "A" e sobre o registro de nascimento e emissão
da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida. Disponível aqui. Acesso
em: 03 set. 2020.
CONSELHO
NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento nº
83, de 14 de agosto de 2019. Altera a
Seção II, que trata da Paternidade Socioafetiva, do Provimento n. 63, de 14 de
novembro de 2017 da Corregedoria Nacional de Justiça. Disponível aqui.
Acesso em: 03 set. 2020.
I JORNADA DE
DIREITO CIVIL, Conselho da Justiça Federal. Enunciado nº 103. Disponível aqui. Acesso
em 03 set. 2020.
RODRIGUES,
Silvio. "Direito Civil: Direito de Família". 27. ed. São Paulo:
Saraiva, 2002, v. 6.
VENOSA, Silvio
de Salvo. "Direito Civil: Direito de Família". 12.ed. São Paulo:
Atlas, 2012,
v. 6.
*Fernanda Amadio Piazza Jacobs Pereira é oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais e de Interdições e
Tutelas em Fernandópolis/SP. Pós-graduada "lato sensu" em Direito
Civil e Empresarial e em Direito Notarial e Registral. Graduada em Direito pela
PUC/SP.
__________
1 VENOSA, Silvio de Salvo. "Direito Civil: Direito de
Família". 12.ed. São Paulo: Atlas, 2012, v. 6, p. 277.
2 RODRIGUES, Silvio. "Direito Civil: Direito de Família".
27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 6, p. 380.
3 Segundo o Código Civil de 1916: "Art. 332. O parentesco é
legítimo, ou ilegítimo, segundo procede, ou não, de casamento; natural, ou
civil, conforme resultar de consanguinidade, ou adoção".
4 O Art. 1º, III, da Constituição Federal prevê como fundamento da
República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana.
5 Constituição Federal, Art. 226. "A família, base da sociedade,
tem especial proteção do Estado".
6 O Código Civil de 2002 estabelece: "Art. 1.593. O parentesco é
natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem".
7 I Jornada de Direito Civil. "Enunciado 103. Art. 1.593: O
Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil além
daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a noção de que há também
parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas de
reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não
contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade socioafetiva,
fundada na posse do estado de filho".
8 Constituição Federal, Art. 227, § 6º. "Os filhos, havidos ou
não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e
qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à
filiação".
9 STF, RE 898060/SC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Luiz Fux, julg.
21/09/2016, DJe. 24/8/2017.
10 Lei 8.069/1990, Art. 46.
11 A lei 8.560/1992 reza que: "Art. 5º. No registro de nascimento
não se fará qualquer referência à natureza da filiação..." e "Art.
6º. Das certidões de nascimento não constarão indícios de a concepção haver sido
decorrente de relação extraconjugal. §1º. Não deverá constar, em qualquer caso,
o estado civil dos pais e a natureza da filiação...".
12 De acordo com a lei 8.069/1990, "Art. 42, §2º. Para adoção
conjunta, é indispensável que os adotantes sejam casados civilmente ou
mantenham união estável, comprovada a estabilidade da família".
13 Art. 14, §1º, do Provimento CNJ nº 63/2017, com a redação alterada
pelo Provimento CNJ nº 83/2019.
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