Comprovada a necessidade e a conveniência do direito alegado, é de ser autorizada a alienação de imóvel gravado com cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade. A vedação contida no art. 1.676 do CC/16 poderá ser amenizada sempre que for verificada a presença de situação excepcional de necessidade financeira, apta a recomendar a liberação das restrições instituídas. Impossibilidade de manutenção do imóvel já alienado a terceiro de boa-fé por contrato particular. Situação excepcional que autoriza o levantamento das restrições.
APELO PROVIDO. UNÂNIME.
APELAÇÃO CÍVEL
DÉCIMA SÉTIMA CÂMARA CÍVEL
Nº 70063797161 (N° CNJ: 0065094-60.2015.8.21.7000)
COMARCA DE PELOTAS
MARIA REGINA BORGES CURY
APELANTE
A JUSTIÇA
APELADO
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes da Décima Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em dar provimento ao apelo.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores DES. GELSON ROLIM STOCKER (PRESIDENTE E REVISOR) E DES.ª LIÉGE PURICELLI PIRES.
Porto Alegre, 16 de abril de 2015.
DES. GIOVANNI CONTI,
Relator.
RELATÓRIO
DES. GIOVANNI CONTI (RELATOR)
Trata-se de apelação cível interposta por MARIA REGINA BORGES CURY contra a sentença das fls. 104/106, a qual julgou improcedente o pedido de alvará judicial requerido.
Consta do relatório da sentença:
“Trata-se de pedido de alvará judicial para levantamento/extinção de cláusulas de impenhorabilidade, incomunicabilidade e inalienabilidade instituídas por seu genitor em testamento sobre os bens imóveis herdados. Afirmou que alienou com ordem judicial um dos imóveis e que pretende obter autorização para do matriculado sob o nº 24.529, que já foi objeto da cessão de direitos, por não possuir condições financeiras de manter mais de uma residência. Requereu AJG e juntou documentos.”
Em razões (fls. 108/110), alegou que o imóvel foi cedido a terceiro de boa-fé, restando apenas a regularização da alienação a qual poderá ser feito através da autorização judicial, ora requerida. Requereu o provimento do apelo.
O Ministério Público opinou pelo desprovimento do apelo.
Os autos foram remetidos ao Tribunal de Justiça e distribuídos a minha Relatoria.
Registro, por fim, que foi observado o previsto nos artigos 549, 551 e 552 do CPC, tendo em vista a adoção do sistema informatizado.
É o relatório.
VOTOS
DES. GIOVANNI CONTI (RELATOR)
Eminentes colegas.
Conheço do recurso porquanto preenchidos os pressupostos de admissibilidade.
A autora ajuizou a presente ação, objetivando a autorização judicial – Alvará Judicial – para o fim de vender imóvel situado na Rua Jornalista Salvador Hitta Porres nº 658, lote 68, Vila Farroupilha, Pelotas, gravado com cláusulas restritivas de incomunicabilidade, inalienabilidade e impenhorabilidade, descrito na matrícula 24.529, do Livro nº 02, da 1ª Zona do registro de Imóveis de Pelotas.
Segundo consta da inicial, a autora não possui condições de manter o imóvel, necessitando de recursos para sua subsistência. Destacou ter pactuado contrato de compra e venda do imóvel no ano de 2010, restando apenas a regularização registral do bem e, para tanto, necessita do alvará judicial para o levantamento das cláusulas restritivas incidentes sobre o imóvel.
Segundo relato feito no parecer ministerial:
Consigne-se, de início, que a autora foi contemplada, por doação de parte de seu genitor, com a propriedade do imóvel objeto da matrícula das fls. 51/52, gravada com as cláusulas restritivas noticiadas, consoante se vê dos R.2-21.539 e R.4-21.539. Posteriormente, através de alvará judicial (fl. 81), obteve autorização para permutar o bem da matrícula de nº 21.539 por aquele da matrícula de nº 2.960, cuja cópia está acostada às fls. 84/86, para o qual foram sub-rogadas as cláusula restritivas já referidas, nos termos dos R.10-2.960, R.11-2.960, R.6-21.539 e R.7-21.539 . Na sequência, no processo n.° 2200771030, cuja cópia está carreada às fls. 18 e seguintes, a recorrente obteve autorização judicial para vender o bem de raiz descrito na matricula de n.º 2.960, transferência que ocorreu, consoante se vê do R.14-2.960, na data de 02.04.2001. Na mesma data a autora adquiriu o imóvel objeto da presente demanda, conforme se vê do R.5-24.529 da fl. 82-verso, para o qual foram sub-rogadas ditas cláusulas. Verifica-se, pois, que, em todas essas transações, ocorreu significativa diminuição do patrimônio da autora, ora apelante.
De acordo com a escritura do imóvel, objeto desta ação, os gravames foram instituídos por cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade, na vigência do Código de 1916.
É cediço que tais cláusulas têm o propósito de vedar a alienação de determinado bem, normalmente a fim de evitar que o beneficiário disponha do imóvel de maneira indiscriminada, dilapidando seu patrimônio.
Na lição de Sílvio Rodrigues:
“A cláusula de inalienabilidade é a disposição imposta pelo autor de uma liberalidade que o beneficiário não pode dispor da coisa recebida, de sorte que o domínio que o beneficiário recebe é um domínio limitado, pois, embora tenha ele a prerrogativa de usar, gozar e reivindicar a coisa falta-lhe o direito de dela dispor.”[1]
Com efeito, dispõem os artigos 1.676 e 1.677, ambos do Código Civil de 1.916:
“Art. 1.676. A cláusula de inalienabilidade temporária, ou vitalícia, imposta aos bens pelos testadores ou doadores, não poderá, em caso algum, salvo os de expropriação por necessidade ou utilidade pública, e de execução por dívidas provenientes de impostos relativos aos respectivos imóveis, ser invalidada ou dispensada por atos judiciais de qualquer espécie, sob pena de nulidade.”
“Art. 1.677. Quando, nas hipóteses do artigo antecedente, se der alienação de bens clausulados, o produto se converterá em outros bens, que ficarão sub-rogados nas obrigações dos primeiros.”
Entretanto, consoante reiterada jurisprudência desta Corte e do STJ, essa indisponibilidade de bens não pode ser tida como uma proibição absoluta, cabendo a análise de cada caso, quando presente a necessidade e a conveniência, especialmente quando demonstrada a lesão de interesses, senão vejamos as seguintes decisões, verbis:
“APELAÇÃO CÍVEL. PEDIDO DE CANCELAMENTO DE CLÁUSULAS DE INALIENABILIDADE, INCOMUNICABILIDADE E IMPENHORABILIDADE. POSSIBILIDADE. SENTENÇA MODIFICADA. A indisponibilidade dos bens decorrente de disposição de última vontade não pode ser vista hoje como uma proibição absoluta, pois existe o interesse social e até público na circulação dos bens, tendo em mira, inclusive, os preceitos constitucionais que asseguram o direito de propriedade e, mais do que isso, de que a propriedade deve ter uma finalidade social. Se inexiste motivo ponderável para manter as cláusulas restritivas, deve ser possibilitado à autora dispor do patrimônio de forma mais ampla e rentável, podendo utilizá-lo como melhor lhe convier. APELO PROVIDO.” (Apelação Cível Nº 70061491924, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Giovanni Conti, Julgado em 13/11/2014)
“RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. CLÁUSULA DE INCOMUNICABILIDADE. PEDIDO DE CANCELAMENTO. 1 - Pedido de cancelamento de cláusula de inalienabilidade incidente sobre imóvel recebido pelo recorrente na condição de herdeiro. 2 - Necessidade de interpretação da regra do art. 1576 do CC/16 com ressalvas, devendo ser admitido o cancelamento da cláusula de inalienabilidade nas hipóteses em que a restrição, no lugar de cumprir sua função de garantia de patrimônio aos descendentes, representar lesão aos seus legítimos interesses. 3 - Doutrina e jurisprudência acerca do tema. 4 - Recurso especial provido por maioria, vencida a relatora.” (REsp 1422946 / MG, Relator Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, DJe 05/02/2015)
Além disso, havendo situação excepcional, como no caso dos autos, onde há demonstração da necessidade financeira, cujo bem, inclusive, já restou alienado por contrato particular a terceiro de boa-fé, justifica-se a liberação dos gravames.
Nesse particular a seguinte jurisprudência do STJ, verbis:
“DIREITO DAS SUCESSÕES. REVOGAÇÃO DE CLÁUSULAS DE INALIENABILIDADE, INCOMUNICABILIDADE E IMPENHORABILIDADE IMPOSTAS POR TESTAMENTO. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. SITUAÇÃO EXCEPCIONAL DE NECESSIDADE FINANCEIRA. FLEXIBILIZAÇÃO DA VEDAÇÃO CONTIDA NO ART. 1.676 DO CC/16. POSSIBILIDADE. 1. Se a alienação do imóvel gravado permite uma melhor adequação do patrimônio à sua função social e possibilita ao herdeiro sua sobrevivência e bem-estar, a comercialização do bem vai ao encontro do propósito do testador, que era, em princípio, o de amparar adequadamente o beneficiário das cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade. 2. A vedação contida no art. 1.676 do CC/16 poderá ser amenizada sempre que for verificada a presença de situação excepcional de necessidade financeira, apta a recomendar a liberação das restrições instituídas pelo testador. 3. Recurso especial a que se nega provimento.” (REsp 1158679 / MG, Relatora Ministra NANCY ANDRIGHI, DJe 15/04/2011)
No caso específico, tenho que presente a comprovação da real necessidade e conveniência de tal medida.
A autora trouxe aos autos elementos suficientes a demonstrar a razoabilidade do pedido, a comprovada lesão ao seu direito e a direito de terceiro de boa-fé, bem como a presença de situação excepcional de necessidade financeira e apta a recomendar a liberação das restrições
Portanto, voto pelo provimento ao apelo.
É o voto.
DES. GELSON ROLIM STOCKER (PRESIDENTE E REVISOR) - De acordo com o(a) Relator(a).
DES.ª LIÉGE PURICELLI PIRES - De acordo com o(a) Relator(a).
DES. GELSON ROLIM STOCKER - Presidente - Apelação Cível nº 70063797161, Comarca de Pelotas: "DERAM PROVIMENTO. UNÂNIME."
Julgador(a) de 1º Grau: RODRIGO GRANATO RODRIGUES
Disponível no site do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul