23 de November de 2015
APELAÇÃO CÍVEL: VIGÉSIMA PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL

Disponível no site do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM APELAÇÃO CÍVEL: VIGÉSIMA PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL Nº 70042509562: PORTO ALEGRE ASSOCIAÇÃO DOS FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS DO ERGS – AFPERGS :APELANTE APELADOS: G. O. F., G. S. B. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos. Acordam os Desembargadores integrantes da Vigésima Primeira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em negar provimento à apelação. Custas na forma da lei. Participaram do julgamento, além do signatário (Presidente), os eminentes Senhores DES. FRANCISCO JOSÉ MOESCH E DES. MARCO AURÉLIO HEINZ. Porto Alegre, 01 de junho de 2011. DES. ARMINIO JOSÉ ABREU LIMA DA ROSA, Presidente e Relator. RELATÓRIO DES. ARMINIO JOSÉ ABREU LIMA DA ROSA (PRESIDENTE E RELATOR) – Trata-se de apelação veiculada pela ASSOCIAÇÃO DOS FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL – AFPERGS quanto à sentença de indeferimento da petição inicial, por ilegitimidade ativa, na ação cautelar de suprimento de vontade movida em face de G. S. B. e G. O. F., neto e filho, respectivamente, de Irene Oliveira de Freitas. Em suma, como entidade mantenedora do Hospital Ernesto Dornelles, em que internada I., em data de 05.12.2010, por quadro de descompensação secundária a insuficiência renal, pré-edema agudo de pulmão, apresentando-se como responsável o neto Guilherme, havendo indicação expressa dos médicos quanto à realização de hemodiálise. Entretanto, o filho G., já agora invocando ser sua a condição de responsável pela mãe, não autoriza o tratamento, de que decorrem riscos de vida, argumentando cumprir desejo materno. Por isso, descrevendo o quadro de uremia que assola a enferma, pretende seja suprida a vontade de quem for o responsável, autorizados os médicos a procederem o tratamento indispensável. Pleiteou e obteve gratuidade de justiça. Manifestou-se o Ministério Público pelo deferimento da liminar, ao que sobreveio sentença de indeferimento da inicial. No apelo, a entidade autora, invocando responsabilidade objetiva, nos termos do art. 14, CDC, sustenta sua legitimidade ativa, aduzindo pretender respaldo judicial “frente à divergência familiar no tocante a aderência ou não da paciente ao tratamento proposto, principalmente diante das circunstâncias que norteiam as decisões baseadas na ortotanásia.” Embora reconheça ser a vontade da paciente, assim como de seu filho, de não realizar o tratamento de hemodiálise, “o que realmente é compreensível diante do sofrimento maior que tal procedimento ainda pode causar ao enfermo e aos seus familiares, sem garantia de que o tratamento proposto outorgará melhor qualidade de vida, pois a doença que a comete não tem cura”, em atenção a sua eventual responsabilização, insiste no provimento judicial autorizar de sua realização. Nesta instância, o parecer do Dr. Procurador de Justiça é pela negativa de provimento. É o relatório. VOTOS DES. ARMINIO JOSÉ ABREU LIMA DA ROSA (PRESIDENTE E RELATOR) – A pretensão recursal não prospera. O presente processo, ultima ratio, reflete a disputa entre a ortotanásia e a distanásia, corresponde a primeira o assegurar às pessoas um morte natural, sem interferência da ciência, evitando sofrimentos inúteis, assim como dando respaldo à dignidade do ser humano, ao passo que a segunda implica prolongamento da vida, mediante meios artificiais e desproporcionais, adjetivando-a de “obstinação terapêutica”, na Europa, senão de “futilidade médica”, nos Estados Unidos. LIA FEHLBERG, professora e doutora, em artigo denominado “A Ortotanásia no Projeto do Código Penal”, assim discorre: “Distanásia seria, portanto, a morte dolorosa, com sofrimento, conforme se observa nos pacientes terminais de AIDS, câncer, doenças incuráveis e outras. O prolongamento da vida para estes indivíduos, seja por meio de terapêuticas ou aparelhos, nada mais representaria do que uma batalha inútil e perdida contra a morte. Jean Robert Debray foi o responsável pela introdução na linguagem médica francesa da expressão “obstinação terapêutica”, que tinha o significado de “comportamento médico que consiste em utilizar processos terapêuticos, cujo efeito é mais nocivo do que os efeitos do mal a curar, por inútil, porque a cura é impossível ou o benefício esperado é menor que os inconvenientes previsíveis”. Conceituando-se a ortotanásia como a morte natural, do grego orthós: normal e thanatos: morte, ou eutanásia passiva na qual se age por omissão, ao contrário da eutanásia onde existe um ato comissivo com real induzimento ao suicídio. A ortotanásia, também seria a manifestação da morte boa, desejável. Na busca de precisão conceitual, existem muitos bioeticistas, entre os quais GAFO (Espanha) que utilizam o termo ortotanásia para falar da “morte no seu tempo certo”. Quiçá seja este um dos embates filosóficos de maior dimensão em termos de definição humana, por estar embainhada pela percepção individual quanto ao sentido da vida Particularmente no âmbito da atuação dos médicos, o tratamento decorrente dos termos do art. 57, Código de Ética Médica, que veda ao médico “Deixar de utilizar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento a seu alcance em favor do paciente”, veio a receber considerável giro em seu alcance, quando o Conselho Federal de Medicina baixou a Resolução CFM n° 1.805/2006. Vale destacar artigo eletrônico de ALEXANDRE MAGNO FERNANDES MOREIRA, noticiando a legislação do Estado de São Paulo, claro, relativa aos serviços médicos disponibilizados pelo Poder Público Estadual, e a especialíssima circunstância a ela atrelada, por envolver saudoso personagem da vida nacional: “Aliás, já existe lei estadual dispondo expressamente em sentido contrário. Em São Paulo, a Lei Estadual 10.241/1999, que regula sobre os direitos dos usuários dos serviços de saúde, assegura ao paciente terminal o direito de recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida. Mário Covas, governador do Estado à época, afirmou que sancionava a lei como político e como paciente, já que seu câncer já havia sido diagnosticado. Dois anos depois, estando em fase terminal, se utilizou dela, ao recusar o prolongamento artificial da vida.” Mesmo autor que lembra projeto de reforma do Código Penal e a introdução do § 4º ao art. 121: “§ 4º - Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio artificial, se previamente atestada por dois médicos, a morte como iminente e inevitável, e desde que haja consentimento do paciente, ou na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão.” A evolução sociológica e jurídica, percebe-se, quanto à questão filosófica, tende a fazer respeito aos sentimentos pessoais, notadamente naquilo em que se remetem à preservação da dignidade da pessoa humana, permitindo-lhe banir recursos científicos para manter artificial existência, notadamente quando impregnados aqueles de sofrimento. Pois bem, o impasse levado ao Hospital está em que o filho G., parente mais próximo e que se atribui a condição de responsável pela mãe, transmitiu ao corpo médico responsável o desejo de Irene de não se submeter à hemodiálise (fl. 240), enquanto o neto Guilherme, responsável pela internação, fl. 173, teria manifestado vontade diversa. Daí ter vindo a juízo e postulado provimento judicial substitutivo da vontade de um e outro (quanto ao neto, na verdade, o pleito estaria na busca de comando judicial que respaldasse sua manifestação, conferindo-lhe superioridade em face daquela externada pelo filho). A hipótese dos autos faz lembrar o célebre caso da americana Terri Schiavo, falecida em 31.03.2005, após ter sido mantida em vida vegetativa por mais de quinze anos, quando a Justiça norte-americana terminou por fazer prevalecer a vontade externada pelo marido, contraposta à dos pais. Desde logo registro não poder eventual responsabilidade indenizatória servir de mote à assunção, pela recorrente, quanto a vontade e desígnio que não são seus, pela óbvia razão de o interesse patrimonial não poder se sobrepor a algo tão relevante como a saúde e, mais, a própria vida. Fosse a pretensão assente na indeclinabilidade do tratamento como conditio sine qua non para assegurar uma sobrevida à paciente, outro o enfoque, maior a preocupação gerada pela pretensão trazida a juízo. Mas, como está visto, é na primeira órbita de interesses em que se situa a pretensão dita cautelar (na realidade, tutela satisfativa, com pleito antecipatório). Por isso, até, bem se poderia resolver o pedido posto em juízo naquilo que diz com o interesse de agir. Penso ter a sentença da Dr.ª LAURA DE BORBA MACIEL FLECK raciocinado com correção, merecendo transcrição na sua essência decisória. “A Constituição Federal, bem como o Estatuto do Idoso, elevam o direito à vida como garantia fundamental de primeira ordem. O idoso merece especial atenção por sua natural hipossuficiência física, o que legitima algumas pessoas à sua proteção, inclusive para interesses individuais, o Ministério Público, quando indisponíveis. No caso em tela, a solução da questão passa pela análise da disponibilidade do direito à saúde e à vida, o que implica na necessária análise da legitimidade ativa. Fundamenta-se. A paciente, por estar acometida de séria doença, não pode expressar aos médicos, empregados do autor, a sua vontade, o que levou à negativa de autorização à realização do tratamento de hemodiálise pelo seu filho, imediato responsável por ela, dentro do Hospital. Referiu o autor que lá também se encontra o neto da paciente, o qual teria opinião contrária, por autorizar o tratamento. Ora, sem poder expressar a sua vontade, e não havendo notícia de lá se encontrar o cônjuge da paciente, responde por ela, em primeiro lugar, o seu descendente mais próximo, no caso o filho. A justificativa dada pelo descendente, para negar autorização para o tratamento, foi de que seria esta a última vontade de I. F., o que é factível, uma vez que é de conhecimento comum que o procedimento da hemodiálise é muito desgastante. Constantes são as desistências pelas dificuldade decorrentes e pela intensidade e tempo que o paciente fica atrelado ao equipamento. Em época na qual é crescente a discussão sobre a necessidade de ponderar-se o direito à vida, confrontando-o com o direito à dignidade da pessoa, o qual também se deve entender como a possibilidade de viver com dignidade e sem sofrimento, tais tipos de tratamentos e doenças, por serem muito gravosos, muitas vezes são, de forma consentida, rechaçados. Decisão recente do Juiz Federal Substituto da 14ª Vara/DF ROBERTO LUIS LUCHI DEMO, no processo n° 2007.34.00.014809-3, reconheceu a legitimidade da Resolução n° 1.805/2006 do CFM, que liberou os médicos para a realização de ortotanásia, nos seguintes termos: “Na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal.” Trata-se de análise da questão pela ótica do autor, Hospital, que pretende isentar-se de responsabilidade pelo tratamento. Não somente pela decisão acima, ainda passível de reforma, mas pelo privilégio da dignidade da pessoa, podem os médicos aceitar a negativa de tratamento ao paciente nessas condições. O caso em tela enquadra-se nesse contexto. O filho pretende, negando autorização, realizar o último desejo de sua mãe. Dado o exposto, com mais razão, não há que se aceitar que a paciente não poderia dispor de sua saúde, se quando ainda possuía discernimento, optou por não mais submeter-se à hemodiálise. No documento de fl. 238, os médicos responsáveis atestam que o tratamento possui risco de levar a paciente a óbito, o que vem a confirmar a alegação do filho, réu, de que não pretendia mais prosseguir lutando contra a doença. Além disso, não é a hemodiálise a solução do quadro de saúde da paciente, que sofre, também, de descompensação cardíaca secundária à insuficiência renal e pré-edema agudo de pulmão. Com relação à alegação de que o neto da paciente é favorável à realização do tratamento, tal não corrobora com a pretensão do autor, pois que em primeiro lugar, responde por ela o filho. Ademais, não há nos autos motivo para retirar a legitimidade do fundamento do filho, quando se nega a autorizar a hemodiálise. Teria toda a legitimidade, o neto, para pleitear o suprimento da vontade, provando especial fato para alterar a vontade. Desse modo, concluindo-se que os médicos podem deixar de prescrever tratamento nos casos específicos dispostos acima, no qual se enquadra a paciente, e concluindo-se que é aceitável que a própria paciente rejeite tratamento para doença que acaba com a sua saúde, tenho que a vontade expressada pelo filho deve ser acolhida, nada podendo fazer o Hospital a respeito. Havendo qualquer motivo para afastamento da responsabilidade do filho, deverá quem tenha relação legal ou de afeto com a paciente, insurgir-se. Ao hospital, como prestador de serviço, cabe acautelar-se de eventual alegação de responsabilidade, como o fez, tomando a declaração do filho, inclusive autenticada, de que não a submeterá ao tratamento (fl. 240). Em decisão semelhante, Apelação Cível n° 70020868162, decidiu o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que o Hospital não possui interesse de agir para a demanda: APELAÇÃO CÍVEL. TRANSFUSÃO DE SANGUE. TESTEMUNHA DE JEOVÁ. RECUSA DE TRATAMENTO. INTERESSE EM AGIR. Carece de interesse processual o hospital ao ajuizar demanda no intuito de obter provimento jurisdicional que determine à paciente que se submeta à transfusão de sangue. Não há necessidade de intervenção judicial, pois o profissional de saúde tem o dever de, havendo iminente perigo de vida, empreender todas as diligências necessárias ao tratamento da paciente, independentemente do consentimento dela ou de seus familiares. Recurso desprovido. No caso, pela leve diferença com relação ao caso acima mencionado, tenho que o problema é de ilegitimidade ativa, pois não pode o Hospital sobrepor-se à vontade da família e, mais especificamente, do representante legal da paciente, para interferir de maneira gravosa na vida da paciente, ainda que com boa intenção e para lhe dar mais algum tempo de vida, porém, a custo de sofrimento que ela não pretende passar.” Por tais fundamentos, nego provimento à apelação. DES. FRANCISCO JOSÉ MOESCH (REVISOR) – De acordo com o Relator. DES. MARCO AURÉLIO HEINZ – De acordo com o Relator. DES. ARMINIO JOSÉ ABREU LIMA DA ROSA – Presidente – Apelação Cível nº 70042509562, Comarca de Porto Alegre: "NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME." Julgadora de 1º Grau: LAURA DE BORBA MACIEL FLECK