O decreto-lei1/2020, de 9 de janeiro de 2020,
introduziu no ordenamento jurídico português um novo direito real - o direito real de habitação duradoura1. "O DHD faculta a uma ou mais pessoas
singulares o gozo de uma habitação alheia como sua residência permanente por um
período vitalício, mediante o pagamento ao respetivo proprietário de uma caução
pecuniária e de contrapartidas periódicas". (cfr. art. 2.º).
O direito real de habitação duradoura é, portanto, um
direito real de gozo limitado, pois onera um imóvel2 cuja propriedade pertence a outrem.
Sublinhe-se, no entanto, que apesar de o legislador
definir o direito em análise como aquele que concede ao(s) seu(s) titular(es) -
o(s) morador(es) - a faculdade de gozo de
uma habitação, é óbvio que o faz com pouco rigor jurídico, uma vez que, como se
sabe, o direito de gozar coisa alheia abrange as faculdades de uso e de
fruição. Ora, se é inquestionável que o morador usa o imóvel para habitação,
dúvidas também não existem de que ele não pode perceber os frutos e produtos
que a coisa produza; designadamente, o morador não
pode dar de arrendamento a habitação sobre a qual se constituiu o direito para
sua residência permanente3. Consequentemente, o direito real de habitação
duradoura não concede ao morador o
gozo, mas apenas o uso de
coisa alheia. Acrescente-se, ainda, que tal acaba por resultar do diploma em
apreço quando, no art. 23.º, o legislador estatuí que o direito real
de habitação duradoura se rege, no que não esteja disposto no Decreto-Lei e, no
que neste não seja regulado, pelo disposto nos artigos 1484.º e seguintes do
Código Civil, com as devidas adaptações, o mesmo é dizer, pelas normas do
direito de habitação.
Saliente-se, ainda, que o direito em estudo apenas pode
ser constituído por contrato, como resulta dos preceitos do Decreto-Lei e das
normas do Código Civil que regulam o direito real de habitação.
A simples leitura das diversas normas que compõem este
novo diploma legal deixa clara a existência de uma significativa carga
obrigacional associada aos estatutos dos dois direitos reais, o do morador e o
do proprietário.
Passaremos a fazer referência a algumas das referidas
obrigações, começando pelas que impendem sobre o morador, para só de seguida
nos referirmos às do proprietário.
A constituição do direito real de habitação duradoura
impõe ao morador o pagamento de uma caução (cfr. art. 6.º
e al. b) do n.º 1 do art. 7. º)4 e de uma prestação pecuniária mensal, por cada mês de duração, cujo
montante é estabelecido no contrato (cfr. art. 7.º, n.º 1, al. a)). Segundo a al. a) do n.º 1 do art.
9.º, ao morador cabe a obrigação de utilizar a habitação exclusivamente para
sua residência permanente, embora não fique prejudicada a possibilidade de o
morador utilizar parte da habitação para outro fim, desde que o faça ao abrigo
de previsão contratual ou através de autorização prévia escrita pelo
proprietário (cfr. n.º 3 do mesmo artigo)5. Deve ainda o morador entregar ao proprietário os montantes relativos ao
Imposto Municipal sobre Imóveis (al. b)
do n º 1 do art. 9.º). "Acresce que está também obrigado
a promover ou permitir a realização das avaliações do estado de conservação da
habitação previstas no decreto-lei e, salvo nos casos da avaliação prévia
prevista no artigo 4.º e no n.º 3 do art. 9.º, a pagar o respetivo custo";
bem como, a "realizar e suportar o custo das obras de conservação
ordinária na habitação" (cfr. al. d) do
n.º 1 do art. 9.º)6. Ao morador compete igualmente a
monitorização do estado de conservação do imóvel - que se realiza pela
elaboração de uma ficha de avaliação a cada 8 anos de vigência do direito real
de habitação duradoura -, no entanto, o proprietário pode assumir a iniciativa
de efetuar a referida monitorização, caso em que o morador está obrigado a
permitir o acesso ao imóvel (cfr. art. 10.º, n.º 2). "Quando o nível de conservação
da habitação constante [desta] ficha (.) for inferior a médio e a avaliação
demonstre que as anomalias existentes resultam da não realização de obras de
conservação ordinária, o morador, no prazo máximo de seis a contar da data da
ficha de avaliação, deve promover a realização das obras necessárias à
reposição do nível médio de conservação e confirmá-lo através de nova
avaliação" (cfr. n.º 3 do art. 10.º).
Por seu turno, o proprietário tem de "assegurar que
a habitação é entregue ao morador em estado de conservação, no mínimo,
médio" (cfr. art. 8.º, n. º 1, al. a)7 e estão a seu cargo as obras de conservação
extraordinária8 - cabendo ao morador a obrigação de o avisar
da necessidade delas (cfr. als. d) e e) do art. 8.º)9. Acresce que, sendo "a habitação" uma fracção
de um prédio sujeito ao regime da propriedade horizontal, segundo a al. b) do art. 8.º, o
proprietário está obrigado a "pagar, na parte relativa à habitação, os
custos de obras e demais encargos relativos às partes comuns do prédio e, no
caso de condomínio constituído, pagar as quotizações e cumprir as demais
obrigações enquanto condómino". Ademais compete ao proprietário
"gerir o montante recebido a título de caução e, com a extinção do DHD,
assegurar a sua devolução ao morador nos casos e termos previstos no presente
decreto-lei". (cfr. al. e) deste
ar. 8.º).
O direito real de habitação duradoura é um direito
vitalício, para o(s) morador(es) a favor de quem é constituído- como
resulta da noção constante do art. 2.º do decreto-lei -, caducando "com a
morte do morador ou, se constituído a favor de mais do que uma pessoa, com a
morte do último deles" (cfr. art. 16.º).
Consequentemente, sob pena de violação do princípio da
taxatividade, obviamente, está proibida a sua transmissão mortis causa10-11 e entre as cláusulas integrantes do negócio
constitutivo não pode constar uma na qual se estipule um termo ou uma condição
resolutiva.
A duração vitalícia do direito deve, naturalmente, constar da
inscrição registal nos termos gerais da al. b) do
n.º 1 do art. 95.º do Cód.Reg.Pred. e de acordo com o expressamente determinado
no art. 22.º do decreto-lei.
Sendo aplicável ao direito de habitação duradoura, no que
não esteja disposto no presente decreto-lei e, no que neste não seja regulado,
os artigos 1484.º e seguintes do Código Civil, com as devidas adaptações, é
inquestionável que em causa está um direito insusceptível de transmissão inter vivos (art.
1488.º do código Civil) e, consequentemente, insusceptível de ser onerado com
uma garantia real que em caso de excussão conduza à sua alienação. No entanto,
nos termos do n.º 1 do art. 13.º, o direito em exame pode
ser onerado com uma hipoteca que vise garantir o crédito concedido ao morador
para pagar, no todo ou em parte, o valor da caução e, de acordo com o n.º 5 do
art. 21.º, na hipótese de incumprimento por parte do morador, iniciando o
credor hipotecário um processo executivo, para se fazer pagar à custa do
direito, havendo lugar à venda executiva, o direito transmite-se ao adquirente
nas condições do contrato, com exceção da duração, que passa a ser de 30 anos a
contar da data da sua constituição12.
A este propósito, sublinhe-se, por fim, que a alteração
da duração do direito, naturalmente, deve passar a constar da inscrição
registal (cfr. art. 22.º).
O proprietário, por seu turno, naturalmente, pode alienar
o seu direito, uma vez que o direito real de habitação duradoura é apenas e só
um direito real de gozo limitado13.
Ao invés, o proprietário, apesar de o ser, não pode
onerar o imóvel com outros direitos reais para além do direito real de
habitação duradoura14, excepção feita à constituição de
uma hipoteca após a constituição do direito de habitação duradoura (cfr. n. º 1
do art. 11.º).
Nos termos do n.º 3 do art. 5.º "o contrato é
celebrado por escritura pública ou por documento particular no qual as
assinaturas das partes são presencialmente reconhecidas". Ora, sendo certo
que o legislador português, desde Janeiro de 2009, através do decreto-lei
116/2008, admite que os negócios reais sobre imóveis obedeçam, em alternativa,
à forma de escritura pública ou de documento particular autenticado15, não podemos deixar de estranhar que para a
constituição do direito real de habitação duradora o legislador se baste com o
mero documento particular com reconhecimento de assinaturas.
De facto, tal opção causa-nos perplexidade, pois nenhum
outro direito real imobiliário pode constituir-se por documento particular com
reconhecimento presencial das assinaturas16. Ademais, é para nós no mínimo estranho que o legislador tenha optado por
considerar equivalentes duas modalidades de formalização da vontade que são tão
diversas, quer no seu ritual, quer na sua força probatória.
Sublinhe-se, ainda, que nos termos previstos pelo n.º 8
do art. 5.º, o legislador também se bastou com o mero documento particular com
reconhecimento de assinaturas como forma do "acto ou contrato que
determine a aquisição da propriedade pelo morador ou a transferência dos
direitos deste para o proprietário, com excepção da resolução".
O direito real de habitação duradoura, como a
generalidade dos direitos reais sobre imóveis, está sujeito a registo para
consolidar a sua oponibilidade erga
omnes perante terceiros (cfr. art. 5.º do Cód.Reg.Pred.)17. Acresce que a respectiva inscrição registal é,
como em regra, obrigatória. No entanto, inexplicavelmente, o legislador não
quis que se aplicassem a este direito as regras gerais da obrigatoriedade, tendo onerado
o morador com a obrigação de requerer tal inscrição - não o titulador - e
apenas no prazo de 30 dias a contar da data de celebração do contrato18.
Diversamente do que acontece no regime jurídico dos
restantes direitos reais, o decreto-lei em apreço não integra uma parte com as
regras relativas à extinção do direito real de habitação duradoura. Não o
obstante, através de uma leitura complexiva do diploma, pode afirmar-se que
o legislador identifica as seguintes causas de extinção do direito: a) a reunião do direito
real de habitação duradoura com a propriedade na mesma pessoa; b) a morte do morador
ou, se constituído a favor de mais do que uma pessoa, a morte da última delas; c) o decurso do prazo de 30
anos, a contar da data da sua constituição, quando adquirido em venda
executiva; d) a renúncia; d) a resolução do
contrato por meio do qual se constituiu o direito.
A extinção determina a produção de dois efeitos jurídicos
essenciais, apresentados no n.º 1 do art. 15.º: o morador fica obrigado à
entrega do imóvel ao proprietário -excepção feita, obviamente, aos casos em que
o direito se extinga por aquisição do direito de propriedade pelo morador -, e
o proprietário fica obrigado à devolução da caução.
A entrega da habitação deve realizar-se nos termos
descritos nos arts. 19.º e 20.º. Designadamente, extinto o direito de habitação
duradoura, "a habitação deve ser entregue, livre de pessoas, no prazo
máximo de três meses a contar da data do ato ou da ocorrência determinante da
extinção" (primeira do n.º 1 do art. 19.º) - mas, evidentemente, sendo a
coisa alienada em benefício do morador, o direito menor extinguir-se-á sem
obrigação de entrega da coisa19. Simultaneamente, uma ficha de avaliação do estado de conservação tem de
ser elaborada "em termos idênticos" aos previstos no art. 4.º (n.º 1
do art. 20.º)20. No entanto, obviamente, "o proprietário não
pode (.) exigir a entrega da habitação em estado de conservação, no mínimo,
médio se o nível de conservação inferior se relacionar com anomalias
decorrentes da não realização das obras que lhe cabe assegurar nos termos do
presente decreto-lei." E dizemos obviamente porque, mesmo sem o
decreto-lei 1/2020, como se sabe, o abuso de direito é um acto ilícito (cfr.
art. 334.º do código Civil).
Durante o período que medeia entre a extinção do direito
e a efetiva entrega do prédio, que como referimos pode durar três meses, o
morador pagará ao proprietário uma "indemnização" pela sua utilização
a título precário, de valor diário proporcional ao montante da última prestação
mensal praticada à data da extinção (n.º 2 do art. 20.º). Desconsiderando a
indevida utilização da expressão "indemnização" (uma vez que inexiste
qualquer ilicitude na permanência do morador na habitação durante aquele prazo,
apesar o direito real já se haver extinguido), o pagamento da contrapartida
pelo uso do imóvel é perfeitamente compreensível, pois continuando o bem a ser
usado também a correspondente contrapartida deve ser paga ao proprietário21.
*Mónica
Jardim é
professora-doutora em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade
de Coimbra, onde é regente da segunda turma da disciplina de Direito das
Coisas, da disciplina de Direitos Reais II e da disciplina de Direito dos
Registos e do Notariado. Presidente do Centro de Estudos Notariais e Registais.
Membro cooptado, por reconhecido mérito científico, do Conselho do Notariado de
Portugal.
__________
1 No preâmbulo do Decreto-Lei, o legislador - depois de
reconhecer que a habitação é um direito fundamental constitucionalmente
consagrado, a base de uma sociedade estável e coesa e o alicerce a partir do
qual os cidadãos constroem as condições que lhes permitem aceder a outros
direitos como a educação, a saúde ou o emprego e de afirmar o papel primordial
da habitação para a melhoria da qualidade de vida das populações, para a
revitalização e competitividade das cidades e para a coesão social e
territorial - justificou a criação deste novo direito, além do mais, declarando:
"As
profundas alterações dos modos de vida e das condições socioeconómicas das
populações, a combinação de carências conjunturais com necessidades de
habitação de natureza estrutural, a mudança de paradigma no acesso ao mercado
de habitação precipitada pela crise económica e financeira internacional, e os
efeitos colaterais de políticas de habitação anteriores, vieram colocar novos
desafios à política de habitação e justificaram a necessidade de lançar uma
Nova Geração de Políticas de Habitação (NGPH) que contribuísse para resolver
problemas herdados e para dar resposta à nova conjuntura do setor habitacional.
Em paralelo com
o agravamento das dificuldades de acesso a uma habitação adequada e com as
alterações relativas às necessidades sentidas pelos agregados familiares,
designadamente quanto à flexibilidade e à mobilidade habitacional, o perfil do
parque habitacional do país em termos de regime de ocupação não tem contribuído
para dar resposta aos problemas existentes.
Com efeito, em
Portugal foi fortemente privilegiado o regime de habitação própria face ao de
arrendamento, por diversas razões, das quais se destacam a escassez de oferta e
a existência de disfuncionalidades no mercado de arrendamento, a facilidade de
obtenção de crédito hipotecário, a disponibilização de apoios do Estado à
compra de habitação e aspetos culturais que valorizam a propriedade.
Em resultado,
73 % dos alojamentos familiares clássicos de residência habitual em Portugal
são ocupados pelos proprietários, o endividamento dos agregados familiares para
aquisição de habitação assume valores muito elevados, o setor do arrendamento é
diminuto e pouco acessível em termos de preços e as famílias encontram-se numa
situação pouco favorável à mobilidade, o que reduz as suas opções e dificulta a
sua adaptação a alterações nas dinâmicas pessoais, familiares e profissionais.
Adicionalmente,
coloca-se na atualidade o novo desafio de conciliar as necessidades em termos
de estabilidade e de segurança na ocupação do alojamento, cruciais para o desenvolvimento
da vida familiar, com as de flexibilidade e mobilidade, que derivam de uma
maior mutabilidade dos percursos de vida das pessoas.
Se em muitos
casos o regime de habitação própria se tem mostrado pouco adequado pela sua
rigidez, pelo peso do investimento que representa e pelas dificuldades de
acesso ao mesmo, por outro lado, o regime de arrendamento nem sempre é
conducente à estabilidade e segurança desejáveis.
Estas
desadequações afetam, de forma mais acentuada, as faixas etárias mais vulneráveis
da população: os mais jovens, com menor capacidade de investimento e maiores
necessidades de mobilidade, e os idosos, que já não conseguindo aceder a
crédito hipotecário carecem de fortes condições de segurança e de estabilidade
habitacional.
Assim, uma
política de habitação que combine as duas lógicas está, portanto, melhor
preparada para fazer face ao caráter mutável das necessidades de habitação das
famílias ao longo do seu ciclo de vida.
Desse modo,
assumem relevância soluções que constituem alternativas à aquisição de
habitação própria e ao consequente endividamento das famílias e dão resposta ~s
necessidades dos grupos etários mais vulneráveis, conciliando condições de
estabilidade e de segurança da solução habitacional das famílias com condições de
flexibilidade e mobilidade".
2 Imóvel esse que tem de estar "legalmente apto para ser
utilizado para fins habitacionais" (cfr. termos da al. b) do art.
3.º).
3 Nos termos da al. g) do art. 3.º, entende-se por "residência
permanente, a habitação utilizada, e forma habitual e estável, por uma pessoa
ou por um agregado habitacional como centro efetivo da sua vida pessoal e
social".
4 O montante da caução é estabelecido por acordo entre as partes,
embora o legislador avance critérios de definição dos valores mínimo e
máximo e de contrapartidas anuais a partir do décimo primeiro ano de
duração do direito.
De facto,
segundo o n.º 1 do art. 6.º, o montante da caução "entre 10% e 20% do
valor mediano das vendas por m2 de alojamentos familiares, por freguesia, aplicável
em função da localização da habitação e da área constante da respetiva
caderneta predial, de acordo com a última atualização divulgada pelo Instituto
Nacional de Estatística, I. P., (INE, I. P.), sendo considerado o valor da
menor unidade territorial para fins estatísticos em que a habitação esteja
localizada no caso de indisponibilidade do valor da freguesia". Esta
"caução é prestada por um prazo de 30 anos, sendo o seu valor inicial
reduzido em 5% ao ano a partir do início do 11.º ano e até ao final do 30.º ano
de vigência do DHD, por força do disposto na al. b) do n.º 1 do artigo
seguinte. De facto, na al. b) do art. 7. º, pode ler-se que "o morador
paga ao proprietário uma prestação pecuniária anual, por cada ano efetivamente
decorrido desde o 11.º ano até ao final do 30.º ano, correspondente a 5% da
caução inicial e paga através de dedução na caução".
5 Isto quer dizer que, contrariamente ao que se dispõe para o
arrendamento, não se inclui na faculdade de uso do imóvel o exercício de
qualquer indústria doméstica. Recordamos que, nos termos do art. 1092.º Código
Civil, "no uso residencial do prédio arrendado inclui-se, salvo cláusula
em contrário, o exercício de qualquer indústria doméstica, ainda que
tributada" (n.º 1) e que "é havida como doméstica a indústria
explorada na residência do arrendatário que não ocupe mais de três auxiliares
assalariados" (n.º 2).
6 Entendendo-se por "obras de conservação ordinária na
habitação" "as obras de reparação de deteriorações na habitação
resultantes do envelhecimento dos materiais e ou do seu desgaste pelo uso
normal, nestas se incluindo as benfeitorias necessárias que se destinem a
evitar a deterioração dos mesmos e a garantir um estado de conservação, no
mínimo, médio" (al. d) do art. 3.º).
7 Este estado de conservação será atestado por uma ficha de
avaliação, que regista as condições existentes na habitação há menos de 12
meses e que deve ser "realizada por arquiteto, engenheiro ou engenheiro
técnico inscrito na respetiva ordem profissional, que não se encontre em
qualquer situação de incompatibilidade ou de impedimento no âmbito desse
processo" (cfr. art. 4.º).
8 As obras necessárias à reposição das condições de segurança,
salubridade e conforto da habitação por anomalias que não sejam decorrentes do
envelhecimento dos materiais e ou do seu desgaste pelo uso normal, incluindo as
benfeitorias necessárias que se destinem a evitar a perda ou destruição da
habitação (al. e) do art. 3.º).
9 "Se o proprietário, no prazo de três meses a contar do aviso
do morador referido na alínea e) do n.º 1, não iniciar as reparações, pode o
morador fazê-las a expensas suas, desde que a necessidade das mesmas seja
confirmada através de realização de avaliação realizada por arquiteto,
engenheiro ou engenheiro técnico inscrito na respetiva ordem profissional, caso
em que pode exigir ao proprietário o pagamento da despesa total com a realização
das obras e da avaliação" (art. 9.º, n.º 3). O proprietário não está,
contudo, onerado com tal obrigação sempre que as "anomalias existentes
result[em] de atos ilícitos e ou do não cumprimento de obrigações por parte do
morador" (ainda a al. d) deste art. 8.º).
10 No entanto, o legislador, com uma cautela despropositada, proíbe,
de forma expressa, a transmissão mortis causa (art. 12.º).
Recordamos que
a proibição da transmissão mortis causa já decorreria da al. a) do n. º 1
do art 1476.º do Código Civil, aplicável em virtude da remissão feita pelo art.
23.º do decreto em análise.
11 Como se referirá de seguida, verificando-se a transmissão inter
vivos do direito, em virtude da excussão da hipoteca que o onere, a sua duração
passa a ser de trinta anos a contar da sua constituição.
12 Saliente-se que na hipótese de incumprimento por parte do morador e
iniciando o credor hipotecário um processo executivo, para se fazer pagar à
custa do direito, o proprietário tem, antes de mais, "opção de compra,
devendo ser citado no âmbito da ação executiva para dizer se pretende ou não
exercer essa faculdade, podendo, para o efeito, utilizar o saldo da caução
existente à data" (cfr. art. 21.º, n.º 1).
Não
exercendo opção de compra, o proprietário deve depositar à ordem do
processo o saldo da caução existente à data da citação referida no n.º 1, não
podendo continuar a utilizá-la, sem prejuízo de poder reclamar no processo os
créditos que detenha ou venha a deter sobre o morador e vendo satisfeitas até
ao valor da caução depositada as dívidas por si reclamadas com prioridade
perante o exequente (cfr. art. 21.º, n.º 3 e n.º 4).
Por fim, apenas
no caso de a caução se revelar insuficiente, haverá lugar à venda executiva do
direito real de habitação duradoura, tendo o proprietário direito de
preferência. Caso o proprietário não exerça o direito de preferência, os
créditos que tenha reclamado por causa do direito real de habitação duradoura
serão graduados após os do credor hipotecário (cfr. art. 21.º, n.º 5).
13 Não obstante, estranhamente, o legislador sentiu a necessidade de o
declarar de forma expressa, estatuindo no n.º 1 art. 11.º que "o
proprietário pode transmitir livremente a terceiros a propriedade onerada com o
direito real de habitação duradoura, de forma onerosa ou gratuita".
14 Cfr. o n.º 2 do art. 5.º, nos termos do qual: "a habitação
deve ser entregue pelo proprietário ao morador (.) livre de pessoas, ónus e
encargos, incluindo outros direitos ou garantias reais, designadamente a
hipoteca".
15 De facto, através do decreto-lei 116/2008, foram alterados vários
preceitos do Código Civil, no sentido de dispensar a escritura pública e passar
a permitir a formalização da generalidade dos negócios jurídicos que têm por
objecto bens imóveis por mero documento particular autenticado.
Deste modo, a
partir de 1 de Janeiro de 2009, passou a poder ser celebrado por documento
particular autenticado, a título de exemplo: a aquisição, a modificação, a
divisão ou a extinção dos direitos de propriedade, de usufruto, de uso e
habitação, de superfície ou de servidão sobre coisas imóveis; a cessão de
créditos hipotecários, quando a hipoteca recaia sobre imóveis; os actos de
constituição, alteração e distrate de consignação de rendimentos e de fixação
ou alteração de prestações mensais de alimentos, quando onerem coisas imóveis;
os actos de constituição e de modificação de hipotecas, a cessão destas ou do
grau de prioridade do seu registo e a cessão ou penhor de créditos
hipotecários; as divisões de coisa comum e as partilhas de patrimónios hereditários,
societários ou outros patrimónios comuns de que façam parte coisas imóveis; a
doação de imóveis; os actos de constituição e liquidação de sociedades civis,
se esta for a forma exigida para a transmissão dos bens com que os sócios
entram para a sociedade; a constituição ou modificação da propriedade
horizontal; a constituição ou modificação do direito real de habitação
periódica; todos os demais actos que importem reconhecimento, constituição,
aquisição, modificação, divisão ou extinção dos direitos de propriedade, de
usufruto, de uso e habitação, de superfície ou de servidão sobre imóveis, para
os quais a lei não preveja forma especial; os actos de alienação de herança ou
de quinhão hereditário, quando existam bens cuja alienação anteriormente devesse
obedecer à forma de escritura pública.
Saliente-se que
também o art. 80.º do Código do Notariado foi alterado, sendo revogado o
princípio, que era basilar do ordenamento jurídico português, segundo o qual
estavam sujeitos à forma de escritura pública os actos que importassem
reconhecimento, constituição, aquisição, modificação, divisão ou extinção dos
direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão
sobre coisas imóveis, passando a exigir-se apenas que tais actos sejam formalizados
por documento particular autenticado.
Sublinhe-se,
por fim, que em Portugal, tem competência para autenticar documentos
particulares, além do notário, os conservadores/registradores, as câmaras de
comércio e indústria, os advogados e os solicitadores. Portanto, estes agentes,
com Decreto-Lei n.º 116/2008, passaram a poder dar forma à generalidade dos
actos sujeitos a Registo predial. E isto, em pé de igualdade, no que respeita à
sua validade, com a escritura pública.
16 É claro que as partes não deixam de poder escolher o documento
particular autenticado, pois, nos termos do n.º 1 do art. 364.º Código Civil,
quando a lei exigir, como forma da declaração negocial, documento autêntico,
autenticado ou particular, este só não pode ser substituído por outro meio de
prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior.
17 Nos termos do n.º 2 do art. 5.º, o registo só não é condição para
consolidar a oponibilidade erga omnes do direito real, tendo por isso um efeito
meramente enunciativo ou de publicidade notícia, se em causa estiver uma
aquisição fundada na usucapião, uma servidão aparente ou factos relativos a
bens indeterminados, enquanto estes não forem devidamente especificados e
determinados.
Saliente-se,
por fim, que apenas quanto à hipoteca o registo assume uma função constitutiva
(cfr. o n.º 2 do art. 4.º do Cód.Reg.Pred. e o art. 687.º do Código
Civil).
18 Foi o decreto-leii 116/2008, através do n.º 1 do art. 8.º-B do
Cód.Reg.Pred., que impôs, em regra, a obrigação de solicitar a inscrição
registal, sob pena de se ser responsabilizado pelo pagamento de quantia igual à
que estiver prevista a título de emolumento (cfr. os n.os 1 do art. 8.º-D do
mesmo diploma legal). De acordo com a redacção actual do n.º 1 do art. 8.º-B do
Cód.Reg.Pred., devem promover o registo dos factos obrigatoriamente a ele
sujeitos as entidades que celebrem a escritura pública, autentiquem os
documentos particulares ou reconheçam as assinaturas neles apostas ou, quando
tais entidades não intervenham, os sujeitos activos do facto sujeito a registo.
E isto, no prazo de dois meses (cfr. art. 8.º-C do Cód.Reg.Pred.).
19 No caso de extinção do direito real de habitação duradoura em
virtude da aquisição da propriedade por parte do morador, o n.º 2 do art. 13.º
estatuí que a hipoteca se transfere para a propriedade. Ora, esta solução não
encontra paralelo no n.º 3 do art. 699.º (nos termos do n.º 2, "se a
hipoteca tiver por objecto o direito de usufruto, considera-se extinta com a
extinção deste direito"; porém, adianta-se no número seguinte, se a
extinção do usufruto resultar da aquisição da propriedade pelo usufrutuário,
"a hipoteca subsiste, como se a extinção do direito se não tivesse
verificado"), nem no art. 1541.º ("extinguindo-se o direito de
superfície perpétuo, ou o temporário antes do decurso do prazo, os direitos reais
constituídos sobre a superfície ou sobre o solo continuam a onerar
separadamente as duas parcelas, como se não tivesse havido extinção, sem
prejuízo da aplicação das disposições dos artigos anteriores logo que o prazo
decorra).
20 Inexistindo tal avaliação, "o proprietário pode assegurar a
sua realização, caso em que tem direito a ser pago da correspondente despesa,
bem como da despesa com as obras que, em função dessa avaliação, sejam
necessárias para dotar a habitação de um estado de conservação, no mínimo,
médio" (ainda o n.º 1 do art. 20.º). Estas despesas podem ser deduzidas no
saldo da caução e o proprietário dispõe de um ano para devolver o saldo
remanescente.
21 Na hipótese de o morador não cumprir estas obrigações (que já não são reais, uma vez que nascem após a extinção do direito real), poderá o proprietário exigir a imediata entrega da habitação e uma indemnização (cujos os montantes a ser pagos, agora sim, decorrem da ilicitude da conduta do morador) calculada nos termos do n.º 3 do art. 19.º: "por cada dia decorrido (...) do início da falta de pagamento da indemnização, correspondente ao dobro do valor diário da última prestação mensal praticada, podendo, para o efeito, o proprietário utilizar a caução existente".
Disponível em: