PODER JUDICIÁRIO
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ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA
EHM
Nº 70055824494 (Nº CNJ: 0307076-41.2013.8.21.7000)
2013/Cível
DIREITO REAL SOBRE COISA ALHEIA. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO. INEXISTÊNCIA.
Segundo interpretação teleológica do art. 1.831 do CCB, o direito real de habitação constitui verdadeira restrição ao direito de propriedade dos herdeiros, razão porque deve ser interpretado de forma circunscrita. No caso dos autos, o próprio apelante admite ter outro imóvel residencial de sua propriedade. Diante disso, está correta a sentença que acolheu o pedido reivindicatório em detrimento do direito real de habitação.
RECURSO DESPROVIDO. UNÂNIME.
Apelação CívelDécima Sétima Câmara Cível
Nº 70055824494 (Nº CNJ: 0307076-41.2013.8.21.7000)Comarca de Ivoti
ERNO JOSE WAZLAWICIKAPELANTE
MARIA ROMILDA WEBERAPELADO
CARMELITA MORAESAPELADO
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes da Décima Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em negar provimento ao recurso.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além da signatária (Presidente), os eminentes Senhores Des. Luiz Renato Alves da Silva e Des.ª Liége Puricelli Pires.
Porto Alegre, 12 de setembro de 2013.
DES.ª ELAINE HARZHEIM MACEDO,
Relatora.
RELATÓRIO
Des.ª Elaine Harzheim Macedo (RELATORA)
ERNO JOSÉ WAZLAWICK apelou da sentença de fls. 82-5, que resultou na procedência do pedido reinvindicatório deduzido por MARIA ROMILDA WEBER e CARMELITA MORAIS.
Expôs que as apeladas se dizem proprietárias do imóvel descrito na inicial por conta de herança e doação. Maria Romilda Weber recebeu parte do imóvel por ser herdeira (irmã) de Ana Maria Edi Braum Moraes (fl. 18v), enquanto que Carmelita Morais recebeu parte do bem por doação de Jorge Ercy Moraes, que, por sua vez, também era herdeiro de Ana Maria Wdi Braum Moraes (fl. 19). De acordo com as apeladas, o apelante estaria ocupando o imóvel apenas a título de comodato verbal.
Impugnou a versão dos fatos narrada pelas autoras, afirmando não corresponder à verdade dos fatos, e alegou que a conclusão manifestada na sentença está incorreta. Asseverou que vivia em união estável com a falecida Ana Maria Edi Braum Moraes.
Admitiu possuir outro imóvel de sua propriedade exclusiva, o qual não integrava o acervo hereditário de Ana Maria Edi Braum Moraes a ser inventariado, porém, acrescentou que essa circunstância não teria o condão de afastar seu direito real de habitação, baseado no art. 1.831 CCB.
Enfatizou que a existência de um imóvel residencial exclusivo de sua propriedade não pode afetar seu direito real de habitação, a teor do art. 7º da Lei 9.278/96. Mencionou que o único requisito a ser implementado para obter o reconhecimento do direito real de moradia consiste na prova de que o imóvel tenha se destinado à residência da família. Trouxe jurisprudência e pediu o provimento do recurso.
Foi deferido benefício da AJG ao apelante e recebido o apelo (fl. 93).
Apresentadas as contrarrazões (fls. 94-7), subiram os autos a esta Corte (fl. 97v), e vieram conclusos para julgamento em 05.08.2013 (fl. 98).
Registra-se que foi observado o disposto nos arts. 549, 551 e 552, do CPC, tendo em vista adoção do sistema informatizado.
É o relatório.
VOTOS
Des.ª Elaine Harzheim Macedo (RELATORA)
O recurso não merece provimento.
Ao contrário do que afirma o apelante, a circunstância de possuir outro imóvel para residência de sua propriedade exclusiva – tal qual admitiu expressamente à fl. 89 do recurso de apelação – constitui sim um óbice ao reconhecimento do direito real de habitação previsto no art. 1.831 CCB:
Art. 1.831 - Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar.
Muito embora a redação do art. 1.831 CCB, não exija de modo expresso que o companheiro sobrevivente não tenha outro imóvel destinado à residência – a realidade é que a defesa baseada no pedido de reconhecimento do direito real de habitação em detrimento do direito de propriedade reivindicado pelos herdeiros constitui típico conflito de bens jurídicos tutelados pelo Direito, cuja solução depende da ponderação.
Não se pode perder de vista que, no caso concreto, o direito real de habitação do companheiro sobrevivente significa impor uma restrição ao direito real de propriedade dos apelados. Portanto, a aplicação do art. 1.831 CCB, precisar passar por uma análise finalística/teleológica de modo a se preservar a justiça do caso concreto. Aliás, a esse respeito vale citar os precisos argumentos declinados pela Desa. Bernadete Coutinho Friedrich, ao julgar caso análogo:
“Nos termos do art. 1.831 do Código Civil de 2002, confere-se ao cônjuge supérstite o direito real de habitação em relação ao imóvel que serviu de residência ao casal. Neste sentido, em que pese não tenha o legislador especificado que o direito real de habitação não alcança o viúvo que possua imóvel próprio, apto a lhe servir de residência, esta condição evidencia-se ao tecermos uma interpretação teleológica do dispositivo legal.
A finalidade do legislador consiste em assegurar ao cônjuge sobrevivente o direito à moradia após a ruptura do vinculo conjugal em face do passamento do consorte. Desta feita, impede-se que os herdeiros venham exigir que o viúvo deixe o imóvel que lhe serviu de residência na constância do casamento.
O direito real de habitação decorrente do direito das sucessões representa verdadeiro cerceamento ao direito de propriedade dos herdeiros, razão pela qual deve ser interpretado restritivamente. Assim, em possuindo a apelante imóvel, o qual inclusive lhe serviu de moradia anteriormente à sociedade conjugal junto ao de cujus, não se justifica que os apelados, na condição de proprietários, tenham o seu direito de propriedade restringido.
Com efeito, o direito real de garantia existe para fins de assegurar a moradia do cônjuge/companheiro sobrevivente depois da morte do consorte, evitando-se, com isso, que os herdeiros executem seus direitos à herança em prejuízo do sobrevivente, que sempre residiu naquele bem.
No caso dos autos, considerando que o apelante admite possuir outro imóvel para residência, não se afigura razoável garantir-lhe o direito real de moradia – o que implicaria mitigar o direito de propriedade dos apelados -, pois o apelante não vai ficar desassistido, sem ter onde morar.
Assim, julga-se que a solução apresentada na sentença proferida pela douta juíza de direito, Dra. Carolina Ertel Weirich, está correta e representa a devida interpretação da regra do art. 1.831 CCB, devendo ser confirmada por seus próprios e jurídicos fundamentos:
Estabelece o art. 1.723 do Código Civil que “é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”.
A prova testemunhal esclareceu com segurança a natureza da relação havida entre a falecida e o atual possuidor do imóvel, bem como o tempo da união.
Com efeito, a testemunha MÁRCIA KITAICH contou que o réu morava no local e comentou com ela que a autora ROMILDA queria tirá-lo das terras, especificando que, pelo que sabia, ERNO havia sido casado com a antiga proprietária do imóvel, mas se separaram, oportunidade em que ANA comprou para o réu uma casa em Capela do Rosário. Referiu, contudo, que o demandado sempre “tentava voltar, mas eles continuavam separados”. Disse que, após a compra da casa em Capela do Rosário, em 2008, ANA morreu três anos depois, salientando que a falecida não teve nenhum outro companheiro desde a separação. Comentou que o réu morou na área em discussão de 2006 a 2008, referindo que o requerido e ANA possuíam apenas união estável. Afirmou que era vizinha do réu e confirmou que a chácara constante nas fotografias das fls. 43/44 foi aquela comprada por ANA para ele, quando da separação, terra na qual já havia uma casa construída. Não soube dizer se a casa em que o réu atualmente morava havia sido construída por ele, salientando apenas que, quando conheceu o extinto casal, a casa já existia (depoimento gravado em CD à fl. 68).
Em sentido oposto, a testemunha MARINO SCHOLLES asseverou que ERNO era companheiro da antiga proprietária das terras, atualmente falecida, acrescentando que o casal morou junto por aproximadamente vinte e cinco anos e que, quando do falecimento de ANA, o casal ainda vivia junto. Contou que havia uma casa velha no local, mas depois foi construída uma nova casa, quando ERNO já vivia com ANA. Referiu que o réu comentou que ele havia ganho uma chácara de alguém, por doação. Por fim, comentou que conhecia o casal das idas deles ao mercado do depoente (depoimento gravado em CD à fl. 68).
A testemunha INÁCIO GRAEFF, vizinho do réu, nada soube dizer sobre o caso, asseverando apenas que havia uma disputa pelo imóvel deixado por ANA, que era companheira do acusado, inclusive quando de seu falecimento. Disse que os pais de ANA também moraram na casa por vários anos e afirmou que a casa nova edificada no terreno havia sido construída por ERNO com a ajuda de seus filhos, num período de seis anos. Referiu ainda que não conhecia a chácara que o réu ganhou em Capela do Rosário (depoimento gravado em CD à fl. 68).
Também a testemunha LUIS SILVÉRIO SCHMIDT e a testemunha BONIFÁCIO GRAEFF disseram que conheciam ERNO há vinte e cinco anos e, desde então, o demandado e ANA sempre moraram no local, até o falecimento dela, negando que o casal tivesse se separado em algum momento, acrescentando a testemunha BONIFÁCIO que o réu estava sempre pelo local. Afirmaram que foi o réu, juntamente com seus filhos, quem construiu a nova casa edificada no terreno e não souberam dizer se a falecida possuía outras terras, ressalvando que ouviram comentários de outras pessoas que compraram parte das terras de ANA (depoimento gravado em CD à fl. 68).
Já o informante BENO BOLL, amigo do réu, disse que a casa em que o demandado morava era de ANA, sua falecida companheira, com quem afirmou que o réu morou por cerca de vinte e quatro anos naquele local. Especificou que as edificações existentes no terreno foram feitas com a mão-de-obra de ERNO, mas não soube dizer se foram pagas por ANA ou não, afirmando que, quando a autora foi hospitalizada, foi o réu quem a acompanhou, negando que eles tivessem se separado em algum período. Acrescentou que o casal possuía ainda outra chácara, “no rio”, onde o réu ficava cerca de três dias por semana, salientando que não conhecia a propriedade (depoimento gravado em CD à fl. 68).
Nesse contexto, do exame do feito conclui-se que é caso de reconhecimento da união estável estabelecida entre as partes, porquanto conviveram, de forma pública e ininterrupta, durante aproximadamente 25 (vinte e cinco) anos, como se casados fossem, constituindo entidade familiar, nos termos do que dispõem o artigo 1º da Lei 9.278/96 e o art. 1.723 do Código Civil, conforme relatado pelas testemunhas e que se depreende da análise dos autos dos documentos acostados pelo requerido às fls. 33/38, relacionamento inclusive não impugnado pelas autoras.
Todavia, quanto ao suposto término da união, não há certeza quanto à separação do casal antes do falecimento de ANA, já que a maior parte das testemunhas assegurou que, embora ERNO residisse esporadicamente em outra casa – chácara na localidade de Capela do Rosário doada a ele –, continuou ininterruptamente frequentando a residência comum, inclusive até a morte de sua companheira, cumprindo destacar que a convivência sob o mesmo teto não é requisito essencial para o reconhecimento da união estável, já que não é exigência prevista no art. 1.723 do Código Civil, consoante disposto na Súmula 382 do Supremo Tribunal Federal, que estabelece que “a vida em comum sob o mesmo teto, more uxório, não é indispensável à caracterização do concubinato”.
Nesse contexto, cabe destacar que, tangente ao direito real de habitação, como regra geral decorre do reconhecimento da união estável, tendo em vista que tal situação de fato confere ao companheiro supérstite o direito de permanecer residindo na casa que servia de residência familiar.
Sobre o instituto, estabelece o art. 1.831 do Código Civil que “ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar”, dispositivo legal aplicável à união estável consoante parágrafo único do art. 7º da Lei 9.278/96 (ainda vigente no ponto), o qual disciplina que “Dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família”.
Importante destacar que se trata de uso e fruição de moradia, direito constitucionalmente assegurado e que deve prevalecer quando em aparente conflito com o pleno exercício do direito de propriedade de terceiros, no caso, as herdeiras da falecida.
Entretanto, o direito do réu esbarra no fato de que a prova angariada é escorreita no sentido de que ele possuía outro imóvel de sua propriedade, e inclusive residia regularmente no local, fato relatado até mesmo em sede de contestação, motivo pelo qual a improcedência do reconhecimento do direito real de habitação como meio de defesa possessória é medida que se impõe.
Resguarda-se ao réu, contudo, eventual indenização por benfeitorias realizadas no imóvel comum, que deverão ser objeto de ação própria.
Especificamente sobre a demanda petitória, destaca-se que a Ação de Reivindicação, nos termos do art. 1.228 do Código Civil1, é o remédio jurídico posto à disposição do proprietário sem posse para reaver a coisa (não a posse, que não necessariamente deve ter tido) do poder de quem quer que injustamente a possua (Apelação Cível Nº 70052789641, Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Pedro Celso Dal Pra, Julgado em 28/02/2013).
Para fazer valer seu direito, o proprietário da coisa deve: a) comprovar a titularidade do domínio sobre a coisa; b) individuá-la, de modo que seja facilmente identificável; c) demonstrar que a posse daquele contra o qual dirige a demanda é injusta.
No caso dos autos, o caderno probatório evidencia que as autoras são as legítimas proprietárias do imóvel, devidamente individualizado na matrícula, e que a posse exercida pelo requerido deixou de ser justa a partir do falecimento de sua companheira, porquanto possuía outro imóvel apto a servir de residência (passando a residir em imóvel de sua ex-companheira, sem autorização do espólio), merecendo, assim, guarida o pleito de imissão de posse.
Diante do exposto, julgo PROCEDENTE o pedido reivindicatório formulado por MARIA ROMILDA WEBER e por CARMELITA MORAES em face de ERNO JOSÉ WAZLAWICIK para DETERMINAR a IMISSÃO DE POSSE das autoras no bem descrito à inicial (matriculado sob o nº 1.739 no Registro de Imóveis de Ivoti).
Prestigiou-se também o princípio da identidade física do juiz, previsto no art. 132 c/c art. 446, inc. II ambos do CPC, pois logo após ter instruído o feito e colhido a prova oral, a mesma magistrada proferiu a sentença. Esse contato direto com a prova produzida pelas partes deve ser valorizado em 2º grau. Aqui, portanto, entre as duas teses valoradas, há de prevalecer, pela suas contingências fáticas, a posição adotada pela juíza de primeiro grau, que bem valorou os fatos e o direito.
Isso posto, nega-se provimento ao recurso.
Des. Luiz Renato Alves da Silva (REVISOR) - De acordo com a Relatora.
Des.ª Liége Puricelli Pires - De acordo com a Relatora.
DES.ª ELAINE HARZHEIM MACEDO - Presidente - Apelação Cível nº 70055824494, Comarca de Ivoti:"À UNANIMIDADE, NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO."
Julgador (a) de 1º Grau: CAROLINA ERTEL WEIRICH
Fonte:
Disponível no material de Jurisprudência do Dia 18 de Setembro de 2014, do IBDFAM