02 de October de 2014
Dissolução de sociedade conjugal. Partilha. Pedido de anulação

Superior Tribunal de Justiça

RECURSO ESPECIAL Nº 1.200.708 - DF (2010/0124197-1)

RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI

RECORRENTE : L A S M L

ADVOGADO : JOSÉ DE CAMPOS AMARAL E OUTRO(S)

RECORRIDO : J F M L

ADVOGADOS : IRINEU DE OLIVEIRA E OUTRO(S)

EVANDRO CATUNDA DE CLODOALDO PINTO

MARCUS VINICIUS VITA FERREIRA E OUTRO(S)

EMENTA

DIREITO DE FAMÍLIA. DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE CONJUGAL. PARTILHA. PEDIDO DE ANULAÇÃO. ALEGADA DESPROPORÇÃO SEVERA. OFENSA AO PRINCÍPIO DA

DIGNIDADE. ANULAÇÃO DECRETADA.

1. Inexiste nulidade em julgamento promovido exclusivamente por juízes de primeiro grau convocados para substituição no Tribunal de Justiça. Precedente do STF.

2. Verificada severa desproporcionalidade da partilha, a sua anulação pode ser decretada sempre que, pela dimensão do prejuízo causado a um dos consortes, verifique-se a ofensa à sua dignidade. O critério de considerar violado o princípio da dignidade da pessoa humana apenas nas hipóteses em que a partilha conduzir um dos cônjuges a situação de miserabilidade não pode ser tomado de forma absoluta. Há

situações em que, mesmo destinando-se a um dos consortes patrimônio suficiente para a sua sobrevivência, a intensidade do prejuízo por ele sofrido, somado a indicações de que houve dolo por parte do outro cônjuge, possibilitam a anulação do ato.

3. Recurso especial conhecido e provido, decretando-se a invalidade da partilha questionada.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e

Vasco Della Giustina votaram com a Sra. Ministra Relatora. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Massami Uyeda. Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Dr(a). EVANDRO CATUNDA DE CLODOALDO PINTO, pela parte RECORRIDA: J F M L. Brasília (DF), 04 de novembro de 2010(Data do Julgamento)

RELATÓRIO

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):

Trata-se de recurso especial interposto por L. A. S. M. L. para impugnação de acórdão exarado pelo TJ/DFT no julgamento de recurso de apelação.

Ação: de anulação de partilha, ajuizada pela recorrente em face de seu ex-marido, J. F. M. L.

A autora argumenta que, por ocasião de sua separação consensual do réu, foi convencida de que as empresas de cujo capital o varão participava se encontravam em dificuldades financeiras, o que a levou a aceitar um acordo de partilha extremamente desvantajoso. Alega a ocorrência de dolo e de lesão enorme perpetrados pelo ex-cônjuge em conjunto com o advogado que representou o casal e pede, por esse motivo, a anulação do negócio jurídico.

Sentença: julgou improcedente o pedido, ponderando-se que “não houve vício de consentimento, mas sim arrependimento posterior pelo mau negócio realizado”.

Acórdão: negou provimento ao recurso de apelação interposto pela recorrente, nos termos da seguinte ementa: PARTILHA JUDICIAL. ANULABILIDADE. DOLO E LESÃO

ENORME. Elementares não provadas. Negado provimento ao recurso.

Embargos de declaração: foram opostos com o principal argumento de que o julgamento foi promovido com a participação, exclusivamente, de juízes de 1º grau convocados ao Tribunal. Foram rejeitados nos termos da seguinte ementa: EMBARGOS DECLARATÓRIOS. NULIDADE PROVENIENTE EM RAZÃO COMPOSIÇÃO DE TURMA COM MAIORIA DE JUÍZES CONVOCADOS. VÍCIO INEXISTENTE. OMISSÃO. NÃO CARACTERIZAÇÃO.

1. A convocação de Juízes de Direito para compor julgamentos dos órgãos colegiados de 2ª Instância, não fere o princípio do juiz natural, haja vista normas expressas em amparo a este ato, na Lei Orgânica da Magistratura Nacional e no Regimento Interno do Tribunal do Julgamento.

2. Os Embargos Declaratórios visam tão somente à correção de impropriedades formais havidas na decisão, não sendo meio hábil para um novo debate sobre o conteúdo do julgado, nos termos do artigo 535 do Código de Processo Civil.

3. Embargos conhecidos e desprovidos.

Recurso especial: foi interposto pela ex-cônjuge com fundamento nas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional. Alega-se violação dos arts.: 118 do Estatuto da Magistratura Nacional (LC 35, de 14/3/1979), a ser interpretado nos termos da Resolução 72/09 do CNJ; 34, § 2º, da Lei do Divórcio (Lei 6.515/77); e 1.574, parágrafo único, do CC/02. Alega também divergência jurisprudencial.

Recurso extraordinário: foi interposto.

Admissibilidade: inicialmente o processo permaneceu sobrestado, porquanto a 3ª Seção do STJ afetara um recurso especial representativo de controvérsia repetitiva (REsp 1.112.121/SP) para discussão quanto à validade de julgamentos levados a efeito por juízes de 1º grau convocados para o Tribunal. Posteriormente, entretanto, o STJ retirou a afetação porque o recurso especial selecionado não preenchia os pressupostos de admissibilidade. Assim, o TJ/DFT realizou o exame de admissibilidade dos recursos especial e extraordinário, admitindo ambos.

É o relatório.

VOTO

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relator):

Cinge a lide a apurar: em primeiro lugar, se é nulo o julgamento levado a efeito, no TJ/DFT, exclusivamente por juízes de 1º grau convocados ao Tribunal; e, em segundo lugar, se é possível a anulação de acordo de partilha em separação judicial, em hipótese na qual a esposa, que alega ser vítima de alegado dolo e lesão, assina acordo que lhe é notoriamente desfavorável.

I – O julgamento por juízes convocados. Art. 118 da LOMAN (LC 35/79) e divergência jurisprudencial.

A primeira linha de argumentos contida no recurso especial volta-se contra o procedimento adotado pelo TJ/DFT de admitir que, numa Câmara presidida por um Desembargador mas integrada, em sua maioria, por juízes convocados, um processo seja julgado exclusivamente por esses, sem a participação de nenhum membro efetivo do Tribunal.

A recorrente argumenta que esse procedimento implicaria admitir a criação de um órgão equivalente a uma Turma recursal fora do âmbito dos juizados especiais, contrariando o espírito do art. 118 da LOMAN e a jurisprudência desta Corte, notadamente em sua 3ª Seção.

Em reforço argumentativo, a recorrente acrescenta que a negativa de reconhecimento da nulidade do julgamento “desatendeu, também, o disposto no artigo 10 da Resolução nº 72, de 31/3/2009, do Conselho Nacional de Justiça (...), que, tratando justamente do procedimento de 'convocação de juízes de primeiro grau para substituição e auxílio no âmbito dos Tribunais', dispõe que as 'Câmaras ou Turmas dos Tribunais deverão ser formadas com maioria de desembargadores titulares e por um deles presididas, todos atuando como relator, revisor ou vogal'”. Na hipótese dos autos, além da composição majoritária da Câmara julgadora por juízes de 1º grau, o processo sob julgamento teria sido decidido apenas pelos juízes, que atuaram como relator, revisor e vogal, o que seria inadmissível.

O TJ/DFT, ao enfrentar a matéria por ocasião do julgamento dos embargos de declaração, justificou a postura adotada diferenciando a convocação de juízes de 1º grau para comporem novas Turmas, criadas para escoamento de excesso de processos aguardando julgamento, e a convocação desses juízes para substituição temporária de membros do Tribunal afastados por qualquer outro motivo. Confira-se: O entendimento que predomina, no âmbito do e. STF e também do e. STJ, é que não podem os Tribunais, a exemplo do que ocorre em algum deles –

acredito que até em um Tribunal Regional Federal – é constituir turmas apenas de Juízes da 1a instância para julgar recursos de competência do Tribunal. A composição de turma só de Juízes de 1a Instância apenas é possível quando se trata de turmas recursais dos Juizados Especiais. Nos tribunais, é preciso que aqueles que ali atuem estejam investidos regularmente. E o juiz de Direito, quando assume no Tribunal em substituição, não atua como Juiz de Direito, mas como desembargador, na vaga do titular, como ocorreu neste julgamento. A base em que se sustentam os embargos de declaração, ou um dos

fundamentos deles, configura-se equivocado: o julgamento não se fez por três Juízes de Direito, mas por três Juízes de Direito que estavam exercendo a função de desembargadores, substituindo desembargador.”

Assiste razão ao TJ/DFT na diferenciação promovida. Há, de fato, duas modalidades de convocação de juízes de primeiro grau no âmbito dos Tribunais: para substituição e para auxílio . Na convocação por substituição, o juiz apenas ocupa a vaga de desembargador por qualquer motivo afastado do Tribunal por período superior a 30 dias. Na convocação para auxílio, que veio a ser regulada pelo art. 5º da Resolução/CNJ nº 72/2009, o juiz é deslocado, em caráter excepcional, para o Tribunal quando o acúmulo de serviços o justificar.

Muita discussão foi travada, no passado, com relação à possibilidade e limites da convocação para auxílio, notadamente pelo TJ/SP. A jurisprudência do STJ, especialmente no âmbito da 3ª Seção, se encontrava dividida, como bem observado pelo recorrente. Contudo, em julgamento recente, o STF pôs fim à controvérsia, reputando válidos os julgamentos promovidos por Câmaras instaladas mediante convocação. Essa decisão foi proferida no julgamento do HC 96.821/SP (Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Pleno, DJ de 20/4/2010), assim ementado: HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. JULGAMENTO DE APELAÇÃO NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. JULGAMENTO. CÂMARA COMPOSTA MAJORITARIAMENTE POR JUÍZES CONVOCADOS. NULIDADE. INEXISTÊNCIA. OFENSA AO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL. INOCORRÊNCIA. ORDEM DENEGADA.

I – Esta Corte já firmou entendimento no sentido da constitucionalidade da Lei Complementar 646/1990, do Estado de São Paulo, que disciplinou a convocação de juízes de primeiro grau para substituição de desembargadores no TJ/SP.

II – Da mesma forma, não viola o postulado constitucional do juiz natural o julgamento de apelação por órgão composto majoritariamente por juízes convocados na forma de edital publicado na imprensa oficial.

III – Colegiados constituídos por magistrados togados, que os integram mediante inscrição voluntária e a quem a distribuição de processos é feita aleatoriamente.

IV – Julgamentos realizados com estreita observância do princípio da publicidade, bem como do direito ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório.

V – Ordem denegada

O posicionamento do STF quanto à inexistência de violação do princípio do juiz natural para as hipóteses de convocação para auxílio , que muito mais dúvidas suscitavam que as convocações para substituição, torna a matéria superada. Tanto que, atualmente, a jurisprudência da 3ª Seção do c. STJ não mais apresenta a divergência verificada anteriormente.

O fato de terem sido três os juízes convocados, todos participando do julgamento ora discutido, não modifica a conclusão a que se chegou. Se o STF admite que uma câmara seja composta, em sua maioria, por juízes convocados, naturalmente admite também um julgamento no qual a opinião manifestada por esses juízes seja determinante. Com efeito, pouca diferença há num julgamento promovido apenas por julgadores convocados e num julgamento promovido por três julgadores, sendo dois convocados e um efetivo, na hipótese que o julgador efetivo profere voto-vencido.

Por fim, deve-se ressaltar que não se pode invocar, neste processo, as regras contidas na Resolução 72/2009 do CNJ. Conforme bem observado pelo recorrido em suas contrarrazões ao recurso especial, referido ato foi assinado em 31/3/2009 para entrar em vigor na data de sua publicação, que se deu em 6/4/2009. O julgamento do recurso de

apelação que motivou este Recurso Especial, contudo, deu-se em 4/2/2009, data anterior até mesmo à elaboração da Resolução, de modo que não poderia, por óbvio, ser por ela abrangido.

II – A invalidade da partilha realizada. Violação dos arts. 34, §2º, da Lei do Divórcio (Lei 6.515/77) e 1.574, parágrafo único, do CC/02. A alegação de dolo e de lesão. Arts. 145 a 150 do CC/02.

Resta enfrentar a matéria de fundo tratada no recurso especial, qual seja, a da possibilidade de anulação da partilha controvertida. Inexistem maiores dificuldades quanto à percepção de que a partilha aqui discutida foi desproporcional. Isso é expressamente afirmado pela sentença, na qual o i. julgador menciona que “de fato, a partilha levada a efeito pelas partes não primou pelo equilíbrio na divisão dos bens” e que tal divisão teria sido “desigual ou até catastrófica para a Autora” (fls. 1064 e 1067, e-STJ). Também no acórdão recorrido isso é afirmado, na medida em que, no voto proferido pelo i. Revisor, pontua-se de maneira expressa que “o apontado desequilíbrio patrimonial na partilha efetivada pelas partes por ocasião da separação conjugal pode ser extraído da mera leitura dos termos da divisão patrimonial homologada” (fl. 1251, e-STJ).

O fundamento, portanto, pelo qual o TJ/DFT não acolheu ao pedido da recorrente não foi o da inexistência do desequilíbrio, mas o da insuficiência desse desequilíbrio para o fim de anulação do ato. Tanto para o juiz que sentenciou o processo como para o Tribunal, os arts. 1.574 do CC/02 e 34, §2º, da Lei de Divórcio, ao possibilitarem que o judiciário se recuse a homologar uma partilha que não preserve “suficientemente o interesse dos filhos ou de um dos cônjuges”, não autorizam que o juiz intervenha na livre manifestação de vontade das partes, mas apenas que lhes preserve a manutenção da dignidade humana. Assim, a mera desproporção da partilha não autoriza sua anulação. É necessário que a desproporção seja de tal ordem a não possibilitar a manutenção de condição digna por um dos consortes. Faz-se, inclusive, analogia ao art. 548 do CC/02, que dispõe que “é nula a doação de todos os bens sem reserva de parte, ou renda suficiente para a subsistência do doador”, para se constatar que a recusa à homologação da partilha se justificaria apenas se o ato de disposição de um dos cônjuges o levar a uma situação de verdadeira penúria.

Contudo, algumas observações, neste ponto, são ainda pertinentes.

Em primeiro grau de jurisdição o MP observou, antes da homologação da partilha, que o acordo aparentemente seria desproporcional, tendo solicitado a realização da audiência de ratificação a que se refere o art. 1.122, §1º, do CPC. A observação do parquet de que a partilha seria desproporcional é utilizada tanto pela recorrente como pelo TJ/DFT, mas para sustentar posições antagônicas. A recorrente afirma que essa observação do MP deveria levar à negativa da homologação da partilha, pelo juízo. O TJ/DFT afirma que, tendo sido a recorrente alertada da desproporção, não poderia agora se voltar contra a respectiva homologação porque estava consciente do ato que praticava.

O alerta feito pelo MP e a audiência de ratificação realizada, no entanto, não têm toda a relevância a eles atribuída pelas partes. O que a recorrente afirma na sua petição inicial e em todo o processo não é que deixou de notar a evidente desproporção da partilha, aceitando-a por erro quanto ao objeto de sua declaração de vontade. Se fosse essa a hipótese, naturalmente o mero alerta do MP poderia suficientemente corrigir o seu desvio de percepção. O que ela alega, contudo, é que estava consciente do ato que praticava, mas que foi levada a essa consciência por dolo de seu ex-marido e do advogado por ele contratado para tutelar o interesse de ambos. Esse dolo se consubstanciaria em falsas afirmações quanto à saúde financeira das empresas gerenciadas pelo varão, que justificariam um sistema de compensações na divisão do patrimônio comum. A recorrente diz, inclusive, que o conflito de interesses entre ela e o advogado que defendeu ambos os cônjuges se evidenciou ainda mais pelo fato de que esse mesmo advogado, que a representara na partilha, aceitou defender seu marido,

contra ela, na ação de anulação, demonstrando claro conflito de interesses. Ora, nessa circunstância, em que se alega a existência de dolo a viciar a percepção de uma das partes

quanto à realidade subjacente ao negócio jurídico, o mero alerta quanto à desproporcionalidade da partilha não é suficiente para trazer luz à recorrente. Ela sabe que a partilha é desproporcional, mas acredita na existência de um motivo para que ela assim seja.

Nesse ponto, é muito importante que se tenha em mente que o dispositivo que autoriza ao juízo não homologar uma partilha que não preserve o interesse de um dos cônjuges não repousa unicamente na necessidade da garantia, sob um ponto de vista unicamente objetivo, de sua dignidade vista como necessidade de subsistência. A preservação da dignidade da pessoa humana é naturalmente importante, mas se trata de um valor que deve ser buscado na interpretação de qualquer relação jurídica. O que caracteriza especificamente o controle judicial sobre a vontade manifestada na partilha é, para além desse princípio, a constatação de que um processo de separação, ainda que consensual, é um processo de dor e de perda. É muito comum que a visão de uma das partes esteja clara pela certeza do que quer e a visão da outra parte esteja obscurecida pela tristeza decorrente de uma grave decepção.

No processo sob julgamento, o acórdão recorrido dá conta de que “o sentimento de confiança mantido pela recorrente em sua relação com o recorrido, embora comum em um casamento, já havia sido há muito abalado, face à descoberta de antigo caso extraconjugal por aquele mantido, do qual, inclusive, sobreveio um filho” (fl. 1.238, e-STJ, grifos nossos). Ora, a dor que sentia a recorrente é óbvia. A descoberta de uma relação extraconjugal, com filho, num casamento de tantos anos retira da pessoa a serenidade necessária para decidir sobre as relações patrimoniais decorrentes da separação. É natural que uma pessoa nessa situação anseie pela solução rápida da questão e que, por isso, torne-se mais frágil, ampliando sobremaneira o campo para possível lesão de seus interesses na partilha. Esse é um dos motivos pelos quais se possibilita ao judiciário o controle prévio e perfunctório desse ato.

No processo sob julgamento, a desproporção entre o patrimônio que foi destinado à recorrente e o que foi destinado ao varão é evidente e muito grande. De todos os bens de que dispunha o casal, os que não foram sonegados foram atribuídos ao homem. A recorrente teve, para si, apenas a promessa de aquisição de um apartamento e uma compensação mensal por tempo limitado, a ela destinadas sem qualquer pacto acessório de garantia.

Nas manifestações do recorrido no processo, ele procura demonstrar a equivalência entre os bens distribuídos de maneira claramente equivocada. Não é razoável, sob nenhum ponto de vista, estabelecer o valor de uma empresa mediante a reprodução do valor de suas cotas sociais, com as devidas vênias ao i. relator do processo, na origem, que trilhou o mesmo caminho. Uma parte significativa do lucro gerado pela sociedade pode ser reinvestido na aquisição de bens e equipamentos que incrementam o patrimônio social. A clientela mantida pela empresa, seu nome comercial ou marcas que detém, fundo de comércio goodwill , entre outros bens materiais e imateriais, têm igualmente significativo valor de mercado. Mesmo uma empresa com patrimônio líquido negativo pode ser, por uma série de circunstâncias e com base em uma série de indicadores contábeis, notoriamente valiosa para negociação.

De todos os elementos que se pode tomar para a avaliação de uma sociedade, o que possibilita os maiores equívocos é a mera análise fria de seu capital social dividido pelo número de quotas. Isso é especialmente significativo neste processo, em que há, segundo as manifestações das partes, diversos bens que se encontram em nome das empresas cuja titularidade foi integralmente atribuída ao varão. A demonstração, que o recorrido procura fazer, de que a partilha foi equânime mediante esse processo de avaliação, ao contrário de demonstrar a justiça da partilha que se visa anular, apenas reforça a ideia de que ele agiu com dolo ao propô-la.

Vale notar, nesse ponto, que há, entre os bens partilhados, quotas de empresas como a LUMIERE ou a TRIANON, que se caracterizam como holdings , tendo como principal atividade a administração de bens próprios e de terceiros. Trata-se, portanto, como sói ocorrer com empresas desse tipo, de sociedade com significativo patrimônio, o que de resto é pontuado em inúmeras manifestações no curso deste processo. Como dizer que o valor de uma holding está adequadamente representado pela expressão nominal de seu capital social? Não faz sentido algum.

Curioso notar que a ideia de equivalência na distribuição do patrimônio mediante esse critério é constantemente sustentada pelo recorrido neste processo, não obstante as contradições a que isso o leva. Dizer, por um lado, que os imóveis que a holding detém não precisam ser mencionados na partilha e, por outro, que o valor da empresa equivale meramente ao seu capital social nominal é incoerente. O conhecimento acerca do patrimônio da empresa é essencial no processo de decisão acerca de sua divisão. Ou seja: o mesmo expediente utilizado para convencer a recorrente a aceitar uma partilha lesivo é repetido pelo recorrido aqui, para convencer o poder judiciário de que tal partilha foi justa. Esse expediente não pode mais prevalecer.

O TJ/DFT afirma que os arts. 34, § 2º, da Lei 6.515/77 e 1.574 do CC/02, que regulam a possibilidade de o juízo não homologar uma partilha que não preserve suficientemente os interesses dos cônjuges ou dos filhos, somente teriam aplicação na hipótese de a desproporção na partilha levar um dos cônjuges a uma situação de miserabilidade. Com efeito, para o TJ/DFT.

Tais dispositivos devem ser interpretados à luz dos princípios inerentes à autonomia da vontade também preservados e tutelados pela legislação de regência, cabendo ao Poder Judiciário somente interferir se inobservados os princípios constitucionais protetivos da pessoa humana. Isso significa dizer, na hipótese, que o mero desequilíbrio patrimonial é insuficiente para a recusa da

homologação ou da posterior anulação da correspondente partilha.

Tal disposição normativa explica-se pela disponibilidade do interesse envolvido, cabendo apenas o Judiciário, sobretudo em se tratando de agentes maiores e capazes, a garantia da parcela mínima necessária à preservação da dignidade do cônjuge como pessoa, cuja ausência pode ensejar as providências epigrafadas.

(...)

Tudo aquilo que excede à parcela mínima necessária à preservação da dignidade da pessoa humana acha-se inserida (sic) na seara da disponibilidade das partes, cujo direito é também tutelado pelo ordenamento jurídico pátrio.”

Com todas as vênias aos ilustres julgadores e louvando o substancioso trabalho elaborado nas mais de vinte laudas que compõem o acórdão recorrido, uma desproporção tão grande a ponto de autorizar a qualificação da partilha como catastrófica pelo juízo de primeiro grau não pode indicar a preservação da dignidade da pessoa humana. Dignidade não é apenas a manutenção do mínimo substancial. A sua preservação tem de ter em conta as circunstâncias particulares de cada situação concreta.

No processo sob julgamento, do vasto patrimônio descrito, coube à recorrente apenas uma parcela indenizatória mensal, de pouco significado comparada ao monte-mor, e a promessa de compra de um apartamento de R$ 500.000,00 no Plano Piloto de Brasília que sequer foi cumprida (o recorrido optou por depositar o dinheiro corrigido monetariamente na conta-corrente da recorrente, como se a simples entrega do dinheiro, mais a correção monetária, compensasse a notória valorização imobiliária ocorrida nos imóveis da capital federal no período). Não poderia haver homologação de uma partilha feita nessas condições.

Forte nessas razões, reconhecendo a violação do art. 1.574 do CC/02, conheço parcialmente e, nessa parte, dou provimento ao recurso especial para o fim de decretar a anulação da partilha controvertida, invertendo-se os ônus da sucumbência.

VOTO

O SR. MINISTRO VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS): Sr. Presidente, também faço minhas as palavras do eminente Ministro Sidnei Beneti.O esmerado voto da ilustre Relatora alcançou todos os aspectos da questão, e o acompanho integralmente, dando provimento ao recurso especial.

CERTIDÃO DE JULGAMENTO TERCEIRA TURMA

Número Registro: 2010/0124197-1 PROCESSO ELETRÔNICO REsp 1.200.708 / DF

Números Origem: 20050020095025 20050110085019 20050110873448 20050110873448REE

PAUTA: 04/11/2010 JULGADO: 04/11/2010

SEGREDO DE JUSTIÇA

Relatora

Exma. Sra. Ministra NANCY ANDRIGHI

Presidente da Sessão

Exmo. Sr. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO

Subprocurador-Geral da República

Exmo. Sr. Dr. MAURÍCIO VIEIRA BRACKS

Secretária

Bela. MARIA AUXILIADORA RAMALHO DA ROCHA

AUTUAÇÃO

RECORRENTE : L A S M L

ADVOGADO : JOSÉ DE CAMPOS AMARAL E OUTRO(S)

RECORRIDO : J F M L

ADVOGADOS : IRINEU DE OLIVEIRA E OUTRO(S)

MARCUS VINICIUS VITA FERREIRA E OUTRO(S)

ASSUNTO: DIREITO CIVIL - Família - Casamento - Dissolução

SUSTENTAÇÃO ORAL

Dr(a). EVANDRO CATUNDA DE CLODOALDO PINTO, pela parte RECORRIDA: J F M L

CERTIDÃO

Certifico que a egrégia TERCEIRA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

A Turma, por unanimidade, deu provimento ao recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e Vasco Della Giustina (Desembargador convocado do TJ/RS) votaram com a Sra. Ministra Relatora. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Massami Uyeda. Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino.

Brasília, 04 de novembro de 2010

MARIA AUXILIADORA RAMALHO DA ROCHA

Secretária

Fonte:

Disponível na Jurisprudência do Dia 01 de Outubro de 2014, do IBDFAM

http://ibdfam.org.br/assets/img/upload/files/AC%C3%93RD%C3%83O%20STJ.pdf