12 de January de 2015
Divórcio. Doação. "Venire contra factum proprium"

PODER JUDICIÁRIO DO ESTADO DA BAHIA

TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Primeira Câmara Cível

RELATÓRIO

Classe : Apelação nº 0000179-10.2011.8.05.0041

Foro de Origem: Foro de Comarca Campo Formoso

Órgão : Primeira Câmara Cível

Relator(a) : Des. Augusto de Lima Bispo

Apelante : João Lins de Araujo

Advogado : Michel Godinho dos Santos (OAB: 30241/BA)

Apelado : Renilde Maria dos Santos Araujo

Advogado : Andreza de Queiroz Lustiago (OAB: 31996/BA)

Procª. Justiça : Regina Helena Ramos Reis

Assunto : Dissolução

Trata-se de apelação interposta contra a sentença de fls. 37/39, proferida pelo MM. Juiz de Direito da Vara dos Feitos Relativos às Relações de Consumo, Cíveis e Comerciais da Comarca de Campo Formoso, nos autos da presente Ação de Divórcio Direto ajuizada por JOÃO LINS DE ARAUJO, que decretou o “divórcio do casal nos termos da fundamentação exposta, permanecendo o bem como consta no documento feito pela demandada e já residente (fl. 09)”.

Em suas razões de fls. 40/45, o apelante, em síntese, sustenta não haver controvérsia nos autos quanto ao divórcio do casal, razão porque o objeto cinge-se ao bem que, segundo alega, deve ser transferido para a sua propriedade, uma vez que por ele foi adquirido, tendo sido doado para a apelada na constância do casamento. Ademais, aduz ter havido vício quando da doação do imóvel, razão porque deve ser reconhecida a sua nulidade.

Ao final, a parte autora, pugna pelo conhecimento e provimento do presente recurso, para reformar a sentença recorrida e acolher o pedido inicial.

A apelada, devidamente intimada, apresentou contrarrazões às fls. 47/52, requerendo, em síntese, o improvimento do recurso, e consequentemente a manutenção da sentença.

Determinada a remessa dos autos à Superior Instância e distribuídos à Primeira Câmara, coube-me a relatoria.

A douta Procuradoria-Geral de Justiça, em parecer de fls. 58/60, entende que o feito em tela discute litígio instaurado entre pessoas capazes, regularmente representadas por advogados e versa unicamente sobre interesses patrimoniais, não podendo nele intervir.

É o relatório.

À Douta Revisora.

Salvador, 15 de janeiro de 2013.

Des. Augusto de Lima Bispo

Relator

ACÓRDÃO

DIREITO DE FAMÍLIA. APELAÇÃO CIVIL. AÇÃO DE DIVÓRCIO DIRETO. REGIME DA SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA. DECRETAÇÃO DO DIVÓRCIO. DIVERGÊNCIA COM

RELAÇÃO AO BEM DOADO NA CONSTÂNCIA DO CASAMENTO. VONTADE LIVRE E CONSCIENTE DO AUTOR, NO MOMENTO DA LIBERALIDADE. BOA-FÉ OBJETIVA. VENIRE

CONTRA FACTUM PROPRIUM. NULIDADE. IMPOSSIBILIDADE. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO.

O pedido não está fundado em vício de consentimento, mas em nulidade de ato. Contudo, não foi elencada a hipótese de nulidade que eiva a doação (art. 145, do CC).

In casu, o apelante não comprovou nenhum vício no ato praticado, capaz de dar ensejo a revogação da doação, fazendo-o de livre e espontânea vontade.

Manifestação de vontade, contudo, que deve ser analisada no momento em que é feita. A liberalidade voluntária, sem vícios, vincula as partes.

O desfazimento da doação ofende a boa-fé objetiva. Venire contra factum proprium. Teoria dos atos próprios.

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 0000179-10.2011.8.05.0041, em que é apelante JOÃO LINS DE ARAÚJO e apelada RENILDE MARIA DOS SANTOS ARAÚJO.

Acordam os Desembargadores, componentes da Primeira Câmara Cível, do Tribunal de Justiça da Bahia, à unanimidade de votos, negar provimento ao recurso, nos termos do voto do Relator.

V O T O

A presente apelação preenche os pressupostos recursais intrínsecos, quais sejam: cabimento, legitimidade, interesse recursal e inexistência de fato impeditivo ou extintivo ao direito de recorrer.

De igual maneira, o recurso possui os pressupostos extrínsecos: regularidade formal e tempestividade, merecendo, portanto, ser conhecido.

Ausentes preliminares passo ao exame do mérito.

O apelante insurge-se apenas com relação ao bem doado na constância do casamento.

Todavia, o recurso do autor não pode ser acolhido e a sentença deve ser mantida por seus próprios fundamentos.

O apelante, fundamentou seu pedido no arrependimento da compra do imóvel, fl. 09, este em nome da sua esposa à época, mas não sustentou a ocorrência de vícios de consentimento no ato, como aqueles previstos nos arts. 138 e seguintes do Código Civil de 2002.

É que o documento de fls. 09 demonstra que o imóvel passou a integrar o patrimônio de RENILDE MARIA DOS SANTOS, em 20/12/2000, através do instrumento de compra e venda.

Dessa maneira, haja vista que tal aquisição patrimonial ocorreu na constância do casamento, ocorrido em 27/01/2000, mediante regime da separação de bens, e considerando que o Código Civil de 2002, em seu artigo 2.039, estabelece que “ O regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil anterior, Lei 3071, de 1º de janeiro de 1916, é o por ele estabelecido”, conclui-se que, no presente caso, o regime a que as partes estão submetidas é o da separação de bens.

Na hipótese, o documento de fl. 09 demonstra o tempo e a origem do bem em disputa e, vindo este agregar ao patrimônio da apelada, evidente é que não pode ser partilhado em ação de divórcio, salvo se por ato de liberalidade da proprietária, o que, in casu, não ocorre.

As afirmações, na petição inicial (fls. 02/04) e nas razões de apelação (fls. 41/46), de que o dinheiro para a compra do bem em litígio foi doado à apelada não é hábil, por si só, a invalidar o documento de fl. 09 que evidencia que o imóvel disputado pertence apenas a esposa.

A questão, portanto, cinge-se à comprovação dos requisitos do art. 555 e 557 do Código Civil, que assim dispõem:

"Art. 555. A doação pode ser revogada por ingratidão do donatário, oupor inexecução do encargo."

"Art. 557. Podem ser revogadas por ingratidão as doações:

I - se o donatário atentou contra a vida do doador ou cometeu crime dehomicídio doloso contra ele;

II - se cometeu contra ele ofensa física;

III - se o injuriou gravemente ou o caluniou;

IV - se, podendo ministrá-los, recusou ao doador os alimentos de que este necessitava."

A análise da prova dos autos não revela ter ocorrido a ingratidão por parte da apelada, a ponto de ser capaz de gerar a revogação da doação na forma das normas acima citadas.

É o que se extrai do depoimento da 3ª testemunha – Luzia Leite de Oliveira - fl. 37, que o autor doou uma casa para demandada e que esta não fez qualquer tipo de ameaça para que o demandante doasse a casa.

Vale trazer a lição do respeitável processualista brasileiro Cândido Rangel Dinamarco, a respeito do ônus da prova, assim dispõe:

"A distribuição do ônus da prova repousa principalmente na premissa de que, visando a vitória na causa, cabe à parte desenvolver perante o juiz e ao longo do procedimento uma atividade capaz de criar em seu espírito a convicção de julgar favoravelmente. O juiz deve julgar secundum allegatta et probata partium e não secumdum propiam suam conscientiam - e daí o encargo que as partes têm no processo, não só alegar, como também de provar (encargo=ônus).

O ônus da prova recai sobre aquele a quem aproveita o reconhecimento do fato. Assim, segundo o disposto no art. 333 do Código de Processo, o ônus da prova ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito; ao réu quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extinto do direito do autor." (Teoria Geral do Processo, 7ª edição, p. 312).

In casu, o apelante não logrou êxito por não ter comprovado nenhum vício no ato praticado, capazes de dar ensejo ao pedido de revogação da doação, fazendo-o de livre e espontânea vontade.

Penso, no entanto, que o acerto está em se admitir a validade e a eficácia da doação que, por isso, é exigível. A manifestação de vontade deve ser examinada no momento em que é feita, de maneira que havendo a liberalidade voluntária, a intenção de doar, o animus donandi no instante em que o doador oferece o bem ao donatário, a vontade livre e consciente, não pode ser ignorada pelo ordenamento e vincula as parte.

É nesse sentido o entendimento de Paulo Nader:

"Penso que a espontaneidade deve estar presente no pactum de contrahendo, qualquer que seja a modalidade contratual E naquele momento que as partes se vinculam jurídica e moralmente. O

contrato definitivo é mera decorrência do ajuste anterior e não importa se a declaração de vontade não coincida com a razão íntima das partes no momento e seja uma consequência da pressão do contrato anterior" (Curso de Direito Civil, vol. 3, Ed. Forense, pg. 289).

Vale observar, ademais, e conforme os apontamentos do autor, que a sua pretensão de ver revogada a doação feita à ré ofende a boa-fé contratual, que deve reger todos negócios jurídicos, gratuitos ou onerosos, porquanto a boa-fé é regra que deve pautar a relação jurídica estabelecida entre as partes.

A repentina pretensão do autor viola o referido princípio, vez que doou o dinheiro para a compra do imóvel de livre e espontânea vontade, não pode agora agir contra os atos que praticou, demonstrando comportamento nitidamente contraditório.

A respeito, escreveu Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro:

"A locução venire contra factum proprium traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente. Esse exercício é tido, sem contestação por parte da doutrina que o conhece, como inadmissível" (Da Boa Fé no Direito Civil, Ed. Almedina, 2001, pg. 742).

A teoria dos atos próprios protege a parte contra a outra que pretende exercer uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente. Depois de criar uma certa expectativa, em razão de conduta seguramente indicativa de determinado comportamento, há quebra dos princípios de lealdade e de confiança se vier a ser praticado ato contrário ao previsto, com surpresa e prejuízo à contraparte.

Nesse sentido, em Acórdão proferido pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça, foi estabelecido que:

"o direito moderno não compactua com o venire contra factum proprium, que se traduz como o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente (MENEZES CORDEIRO, Da Boa-fé no Direito Civil, 11/742). Havendo real contradição entre dois comportamentos, significando o segundo quebra injustificada da confiança gerada pela prática do primeiro, em prejuízo da contraparte, não é admissível dar eficácia à conduta posterior" (REsp. n. 95539-SP, relator Min. Ruy Rosado de Aguiar).

Assim, mostra-se correta a sentença quando assim dispõe:

[…] Na própria inicial o autor informa que passou o imóvel no nome da demandada em razão da divergência que possuía com os filhos, não mencionando em nenhum momento qualquer exigência ou mesmo coação da demandada para que praticasse tal ato, ou seja, de livre e espontânea vontade o autor visando assegurar direitos para a sua esposa fez a transferência do imóvel em seu nome. Desse modo não havendo motivo para desencadear a anulação ou mesmo declaração de nulidade do ato praticado não há que se falar em transferência do imóvel para o autor por eventual vício de consentimento ocorrido. Por fim, considerando que o casamento foi feito através do regime de separação de bens, deve o referido bem permanecer com a demandada.[...]

Logo, sob nenhuma das vertentes analisadas a pretensão do autor tem acolhimento, de modo que entendo que a sentença, que decretou o divórcio do casal e não concedeu o pedido do autor em transferir o imóvel da ré para o seu nome, decidiu acertadamente a lide e, portanto, deve ser mantida por seus próprios

fundamentos.

Pelo exposto, meu voto é no sentido de NEGAR PROVIMENTO ao recurso.

Sala das Sessões, 28 de janeiro de 2013.

PRESIDENTE E RELATOR

PROCURADOR (A) DE JUSTIÇA

Disponível na Jurisprudência do IBDFAM, do Dia 09 de Janeiro de 2015

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