22 de May de 2019
IREGISTRADORES: REGISTROS SOBRE REGISTROS #156

(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis: a hipoteca - parte 17)

Des. Ricardo Dip

800. Vejamos, agora, em breves referências, alguns temas pontuais ainda relativos ao capítulo da extensão objetiva da hipoteca.

Primeiro, o das acessões naturais e artificiais (ou industriais). Quer-se aqui considerar, enfim, se as acessões secundum naturam vel secundum industriam hominum se integram à hipoteca, ou seja, se elas se incluem no imóvel garante, ainda que se trate de acessões sobrevindas à instituição da garantia.

O Código civil brasileiro em vigor trata as acessões sob o prisma da aquisição da propriedade (é o que se lê no título da Seção III do Capítulo I do Título III desse Código). Ali se diz serem acessões (art. 1.248), algumas delas sempre naturais, reportáveis (i) à formação de ilhas; (ii) à aluvião; (iii) à avulsão; (iv) ao abandono de álveo; outra, sempre artificial: a construção; enfim, outras, ainda, as plantações, que podem ser simpliciter naturais (é o caso das plantas originárias também chamadas de “plantações nativas”, assim consideradas as que não foram resultado de plantio humano), ou plantações mistas: as implantações e os replantios de espécies quer nativas, quer exóticas.

Embora caiba reconhecer que as acessões sejam modos de adquirir a propriedade e até, quanto a suas espécies naturais, serem modos aquisitivos originários (p.ex., Jörs-Kunkel), não menos cabe admitir que sejam também modos contrapostos de perder a propriedade. E é na linha desta perspectiva de perdimento que, ad exemplum, poderá ler-se em Álvaro D’Ors que “alguién pierde una propiedad por especificación o accesión”.

Disto resulta, para espelhar-se a realidade no registro, a admissibilidade e a pertinência de medidas retificadoras tanto na matrícula do prédio desfalcado de uma sua porção, quanto na matrícula do imóvel acedido com o acréscimo (mas, quanto ao abandono de álveo, não custa dizer que, no direito romano, isto dava ensejo a um novo imóvel).

A muito recomendável visita às valiosas páginas do Curso de direito civil brasileiro do Conselheiro Joaquim Ribas cuja primeira edição é de 1865 permite ali encontrar um claro conceito das acessões: das naturais, “coisas naturalmente acessórias”, coisas que “provêm unicamente da ação das leis naturais”, assim as exemplifica o Conselheiro Ribas, “as terras que se ajuntam ao nosso solo, ou pela aluvião, ou pela força do rio desde que a ele se unam inteiramente; as que são abandonadas pelo rio; e as ilhas que nestes formam”. Das artificiais ou industriais, as que advêm da vontade e do ato humano, as “que o trabalho humano produz, embora coadjuvado pela ação das leis naturais”.

Quanto às acessões naturais, sejam, pois, que as advindas de um acréscimo paulatino, latente incrementum latens ou aluvião, do latim alluvio, is, acrescentamento difícil de aferir, de maneira segmentada no tempo, porque é uma forma vagarosa de acrescer e perder (“acréscimo lento e insensível” Clóvis Beviláqua), seja, além disto, quando o acréscimo (e perda contraposta), diversamente, dê-se com ímpeto, com violência (avulsão), seja, ainda e por fim, no abandono do leito de um rio (abandono do álveo, alveus derelictus; o substantivo latino alveus, alvei, possui várias acepções: inter plures, cavidade, vasilha de maneira, porão de navio, barco, enxame de abelhas, além da noção de leito ou canal de um rio ꟷcf. Torrinha), há sempre nisto o traço comum de serem um acessório natural, um fenômeno produzido pela própria natureza e não pela vontade humana.

Daí, quanto a essas acessões naturais, a persistência do valor dos aforismos romanos de que emanam o critério da alteração dominial acréscimo e perdimento correspondentes nas hipóteses de accessiones secundum naturam, a saber: accessio cedit principali, ou accessorium cedit principali, res accessoria sequitur sortem rei principalis, cēt., com a ideia central de o acessório seguir o principal, seguir-lhe a sorte (sequitur sortem rei principalis), seguir-lhe mesmo a natureza: accessorium sequitur naturam sui principalis ou accessorium naturam sequi congruit principalis. De maneira mais particular, empolgando a agregação imobiliária, veja-se esta interessante adágio romano: fundus fundo accedit, sicut portio portioni: um imóvel acede a outro imóvel, qual uma porção a outra (cf. Mans Puigarnau; fundus, fundi, significando neste passo bens de raiz, terras, imóveis; daí o adjetivo vernáculo fundiário: relativo a terrenos).

Cabe salientar que a clave da extensão hipotecária objetiva, no quadro das acessões naturais, está posto na ideia de agregação de terras resultante em imóvel corporalmente único. Assim, o ajuntamento de terras leva à expansão do objeto da hipoteca, nada importando que a porção agregada seja quantitativamente maior do que o imóvel originário acedido, tanto que seja este unitário fisicamente. Lê-se, a propósito, em Morel y Terry, que invoca o apoio de doutrina de Galindo e de Escosura: “el incrementum latens (…) queda hipotecado con la finca, por extenso que sea el terreno de aluvión, y aunque llegue a exceder al hipotecado, porque la finca siempre se reputa única”. Assinale-se, porém, que já unidade imobiliária derivada da superveniente agregação de prédios contíguos pela vontade ou ato humano não se reputa acessão, porque os imóveis anexados, nesta hipótese, diz Clóvis Beviláqua, “conservam a sua individualidade, quando considerados em relação ao bem, a que se vieram juntar” (no mesmo sentido: Carvalho Santos, Serpa Lopes, Tito Fulgêncio). Talvez possa pensar-se noutro fundamento para recusar o caráter de acessão neste quadro: é que a agregação de imóveis contíguos não se traduz, em abstrato, num relacionamento entre algo principal e algo acessório, ainda que, em concreto, possa, eventualmente, apontar-se uma principalidade de um em detrimento da do outro.

É por esta mesma trilha qual a de o acessório (a porção aluvional, etc.) seguir a sorte do principal que o Conselheiro Rodrigues Lafayette diz compreenderem-se na hipoteca “as coisas que por acessão aderem ao imóvel, como são as ilhas que surgem nos rios, o álveo que o rio abandona, os acréscimos trazidos por aluvião ou pela retirada lenta das águas (…)”.

Esse entendimento de Lafayette estava em harmonia com a normativa então expressa, qual a do regulamento anexo ao Decreto n. 3.453/1865 (de 26-4), regulamento em que se previa compreendidas na hipoteca, as acessões naturais que lhe sobreviessem à constituição (§ 4º do art. 142), e, de modo mais específico, “os terrenos de aluvião”, qualquer fossem sua extensão e sua importância (§ 4º do art. 143).

Mais adiante, com o Código civil brasileiro de 1916 assentou-se que a hipoteca abrangesse todas as acessões (art. 811), as “naturais e as produzidas pelo trabalho humano, como os melhoramentos” (Clóvis Beviláqua), norma compreensiva tanto das acessões anteriores à instituição da hipoteca, quanto as surgidas durante sua vigência. Serpa Lopes, depois de observar que “as acessões podem ser produzidas por qualquer causa, seja esta natural, acidental, ou resultante do fato do homem”, refere-se especificamente ao aluvião, ao álveo abandonado, à formação de ilhas, aos edifícios construídos “e os aumentos que se lhes fizerem”.

Igual preceito ao do Código de 1916 encontra-se agora no Código civil de 2002 art. 1.474: “A hipoteca abrange todas as acessões, melhoramentos ou construções do imóvel”, e a doutrina corresponde abona a orientação tradicional, ad exemplum: se o prédio “é aumentado por coisas acedidas, estas passam a integrar a coisa hipotecada e, por conseguinte, a garantia do credor” (Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery); “a hipoteca abrange todas as construções, plantações e benfeitorias que guardam relação de acessoriedade com o imóvel” (Francisco Eduardo Loureiro), nada importante que surjam depois da constituição da garantia, porque se integram “automaticamente à hipoteca, independentemente de previsão negocial” (Id.; disto apenas cabem excluir, já ficou estudado o ponto, as acessões e benfeitorias pertencentes a terceiros).

Segundo ponto a examinar: para que se reconheça a extensão objetiva da hipoteca em caso de acessão é necessária sua constância registral?

É o que veremos a seguir.

Fonte: iRegistradores

Disponível em:

http://www.cnbsp.org.br/index.php?pG=X19leGliZV9ub3RpY2lhcw==&in=MTc5MTg=&filtro=1&Data=