19 de March de 2020
Pandemia do coronavírus: os impactos em casos de Direito das Famílias

A pandemia do coronavírus e o consequente estado de vigília em todo o mundo fizeram surgir uma variedade de casos relativos ao Direito das Famílias. O princípio do melhor interesse da criança e a prisão de devedores de alimentos estão entre as questões que tomaram o Poder Judiciário neste momento de alerta e precaução.

Após voltar de viagem à Colômbia, um pai foi impedido de ver a filha por determinação do desembargador José Rubens Queiroz Gomes, da 7ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo – TJSP. A mãe da menina entrou com ação alegando que a criança possui problemas respiratórios graves, o que a inclui no grupo de risco.

Os pais, que são separados, não chegaram a um acordo sobre a questão. A solicitação pleiteada pela mãe havia sido negada em primeira instância. Todavia, julgando a questão em caráter liminar, o desembargador do TJSP considerou que “não haverá grande prejuízo se a criança permanecer mais nove dias sem ver o genitor”.

A decisão acolheu parecer do Ministério Público, segundo o qual a posição mais adequada é a de suspender as “visitas do pai à filha até o dia 21 de março”, quando completam 15 dias do retorno do homem ao Brasil. Seu direito de conviver com a menina poderá ser novamente limitado caso ele apresente sintomas do coronavírus. Até esta quarta-feira (18), a Colômbia tem 75 casos confirmados.

Melhor interesse e proteção da criança

Para a advogada Melissa Telles Barufi, presidente da Comissão da Infância e Juventude do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, a decisão do TJSP é acertada. Ao analisar a questão, o desembargador atendeu o melhor interesse da criança, garantindo-lhe máxima proteção.

“O que nos chama atenção e merece nossa referência é a atitude do genitor que não ponderou as razões apresentadas pela genitora, inclusive extrajudicialmente, para proteger a criança de dois anos, que nos últimos meses sofreu de doença respiratória, e que se for contaminada pelo COVID-19 poderá sofrer maiores consequências”, diz Melissa.

Ela observa que a convivência familiar é de extrema importância e deve ser preservada, mas é imprescindível que o convívio ocorra de forma saudável, garantindo que a criança esteja protegida em todos os aspectos. “Estamos vivendo tempos difíceis, de certas restrições e precisamos de muita empatia e solidariedade. Pedimos que os familiares protejam uns aos outros neste momento, sem pânico e com responsabilidade.”

“Necessário que os pais se ajudem, principalmente aqueles que estão separados, no intuito de trocar informações importantes sobre os filhos, observando e agindo para atender as necessidades das crianças e dos adolescentes a fim de colocá-los em maior segurança possível. Assim, o diálogo é fundamental e o momento está proporcionando espaço para isso”, reforça a advogada.

Ela ressalta que o diálogo com os menores é fundamental para que este seja um momento de aprendizado. “Destacamos que nos casos onde a convivência não é recomendada, ante as precauções emitidas pelos órgãos responsáveis, devemos lembrar e fazer o bom uso dos inúmeros meios de comunicação remoto que possuímos”, diz Melissa, que sugere contatos por meio de ligações telefônicas, chamadas de vídeo, entre outros.

“O genitor que está na companhia da criança ou do adolescente deve explicar a situação de que o outro genitor está se ausentando por motivo de saúde e segurança, para protegê-los de uma possível contaminação. E, obviamente, facilitar o máximo possível o contato remoto, inclusive incentivando os menores”, aconselha a advogada.

Melissa acrescenta que devem ser redobrados os cuidados com as pessoas idosas, com certa restrição nos movimentos de convivência já que figuram como grupo de maior risco. “De outra sorte, é um momento relevante para que possamos transmitir o dever de cuidado e solidariedade aos nossos filhos, inclusive para ensiná-los a atenção e zelo a ser dispensados aos idosos”, diz.

Suspensão de audiências

“O direito da criança e do adolescente preocupa-me em especial, pois precisamos impor a prioridade absoluta na forma preconizada pelo artigo 227 da Constituição Federal”, defende a advogada Silvana do Monte Moreira, presidente da Comissão de Adoção do IBDFAM.

Ela comenta a decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro – TJRJ, que suspendeu por dois meses audiências e sessões de julgamento de primeiro e segundo graus. Segundo a advogada, a medida é insustentável e afeta o melhor interesse da criança em casos de adoção, por exemplo.

“Para uma criança o tempo corre de forma diferente. O tempo da criança é o agora”, comenta Silvana. “Entendo que os processos de adoção, destituição do poder familiar, guarda, habilitação, não podem parar por 60 dias, são processos que tramitam com prioridade absoluta e assim devem ser tratados.”

“Sessenta dias sem audiências, sem movimentação processual é algo inconcebível e inimaginável. Já conseguimos renovar uma guarda nesse período, pois os juízes, no caso da capital do Rio de Janeiro, são absolutamente vocacionados”, diz Silvana.

Ela atenta à necessidade de atenção à saúde de magistrados, serventuários e advogados, em especial aos que fazem parte do grupo de risco – maiores de 50 anos e com problemas de saúde. Nesses casos, o Processo Judicial Eletrônico – PJe seria de grande serventia, mas sequer foi implantado pelo TJRJ nos casos de infância e juventude.

“Como manter crianças em entidades de acolhimentos que estão em situação calamitosa? Como cuidar deles e de quem deles cuida? Estamos no momento em que o welfare state vem sendo aniquilado, e os vulneráveis sofrem com a falta de políticas públicas. A infância é o recorte mais trágico”, assinala Silvana.

Soltura de devedor de pensão

Preso por não pagar pensão alimentícia, um homem teve a soltura determinada pelo juiz André Treddinick, da 1ª Vara de Família do Fórum Regional de Leopoldina, no Rio de Janeiro. A decisão considerou que o devedor se encontrava em condições típicas do sistema prisional brasileiro, com desrespeito às diretrizes básicas referentes à área mínima por preso, superlotação e higiene, sem condições de se impedir a disseminação viral.

Para o advogado e professor Rolf Madaleno, diretor nacional do IBDFAM, o magistrado agiu corretamente. “O que o juiz fez foi suspender a execução da pena de prisão civil. Afinal, mais vale um pai vivo, que eventualmente pode recuperar a obrigação alimentar ou voltar a ser preso, do que ter um pai morto que nunca mais poderá contribuir”, diz o jurista.

Em sua decisão, o magistrado argumentou ainda que as Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos da Organização das Nações Unidas diferenciam presos civis dos condenados criminalmente, determinando que “os reclusos não devem ser submetidos a maiores restrições nem ser tratados com maior severidade do que for necessário para manter a segurança e a ordem”.

“A condenação civil é completamente distinta da criminal”, explica Rolf. “O devedor civil, que pode ser preso por não pagar a pensão alimentícia, está sofrendo uma forma de coação. Não deve para a sociedade por um crime que cometeu. Os presos criminais têm uma obrigação em relação à sociedade e estão presos não só por isso, mas também pela segurança geral”, difere.

Segundo Rolf, a decisão “levou em consideração as mesmas cautelas que todo o governo deveria ter e que percebemos na grande maioria dos países”. Ele diz que, daqui em diante, durante a pandemia do coronavírus, o Judiciário deve apresentar o mesmo olhar cauteloso para as prisões por dívida de pensão alimentícia.

“Estamos em um momento completamente atípico, nunca antes vivido, em que todos devemos ficar completamente isolados, dentro de casa. É o que as pessoas estão fazendo em todo o mundo: trabalhando em casa, e podendo ser presas, em alguns países, se transitarem pela rua. Tornamo-nos todos prisioneiros do coronavírus”, assinala Rolf.

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