APELAÇÃO
CÍVEL – ANULATÓRIA DE TESTAMENTO – DIREITOS CIVIL E CONSTITUCIONAL – CASAL
HOMOAFETIVO – RECONHECIMENTO COMO ENTIDADE FAMILIAR – ADI 4.277 E ADPF 132 STF
– REPRODUÇÃO ASSISTIDA – MORTE DO COMPANHEIRO ANTES DO NASCIMENTO –
RECONHECIMENTO DE FILIAÇÃO EM TESTAMENTO – LEGALIDADE E VALIDADE – REPERCUSSÃO
GERAL RECONHECIDA – CONCOMITÂNCIA ENTRE PATERNIDADES SOCIOAFETIVA E BIOLÓGICA –
STF: RE 898.060 – IMPOSSIBILIDADE DE REDUÇÃO DAS REALIDADES FAMILIARES A
MODELOS PRÉCONCEBIDOS – NOVAS FORMAS DE FAMÍLIA – MULTIPARENTALIDADE –
PATERNIDADE RESPONSÁVEL – ART. 226, § 7º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA –
INCAPACIDADE DA TESTADORA NÃO COMPROVADA – PERÍCIA OFICIAL CONCLUSIVA – RECURSO
NÃO PROVIDO
– A
legislação civil contempla, em diversos diplomas normativos, o reconhecimento
de filiação em testamento, não cabendo impor limitação à hipótese única de
filho havido fora do casamento e à existência de vínculo biológico, por
manifesta ausência de vedação na ordem jurídica em vigor.
– A
compreensão jurídica contemporânea das famílias exige a ampliação da tutela
normativa a todas as formas pelas quais a parentalidade pode se manifestar.
– A
partir dos julgamentos paradigmas do STF em repercussão geral, todas as formas
de união que resultem em entidade familiar merecem proteção constitucional,
inclusive quanto à constituição de prole, ainda que resulte em múltiplos
vínculos, sejam biológicos e, não só, mas também afetivos.
– A
incapacidade do testador deve ser demonstrada mediante provas robustas e
idôneas, quanto à falta de discernimento para a prática do ato por livre
vontade.
Apelação
Cível nº 1.0625.13.003018-6/001 – Comarca de São João del-Rei – Apelante: Marie
Anne Francoise Henriette Chauvel, Armand Jean François Chauvel e outro –
Apelado: Denise Carneiro dos Reis Bernardo, C.A.B. representado pela Curadora
Especial Juliana Cioglia Dias Hipólito Atalla – Relator: Des. Marcelo Rodrigues
ACÓRDÃO
Vistos
etc., acorda, em Turma, a 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de
Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, à unanimidade, em negar
provimento ao recurso.
Belo
Horizonte, 11 de dezembro de 2018. – Marcelo Rodrigues – Relator.
NOTAS
TAQUIGRÁFICAS
DES. MARCELO RODRIGUES
– Cuida-se de recurso de apelação interposto por Armand Jean François Chauvel e
Marie Anne Françoise Henriette Chauvel em face da sentença de f. 501 a 509-TJ,
pela qual foi julgado improcedente seu pedido inicial na ação de anulação de
testamento que movem contra Denise Carneiro dos Reis Bernardo e C.A.B., menor,
representada pela curadora especial.
Condenou
os autores ao pagamento de custas e honorários fixados em R$2.000,00 (dois mil
reais).
Houve
interposição de embargos de declaração pelos autores às f. 510 a 524-TJ,
rejeitados pela decisão de f. 525-TJ.
Em
suas razões de recurso de f. 526 a 552-TJ, os apelantes alegam a ilegalidade do
reconhecimento de filiação por testamento, quando não se amolda à hipótese
legal de filho havido fora do casamento. Discorrem que a apelada C. não é filha
biológica da testadora, motivo pelo qual não se aplica o disposto no art. 1.609
do Código Civil.
Apontam,
também, que, por não se tratar de inseminação artificial heteróloga, não há
como aplicar o art. 1.597, inciso V, do Código Civil, conforme também a
Resolução 2.121, de 2015, do Conselho Federal de Medicina.
Sustentam
que a menor vem desenvolvendo relacionamento afetivo com o pai biológico,
Fabrício Molica de Mendonça, e que a falecida não teve qualquer relação
socioafetiva com a menor a ensejar o reconhecimento da filiação.
Aduzem,
ainda, que o negócio jurídico, como o testamento, exige objeto lícito (fato não
constatado neste processo), e que o recebimento da herança não pode estar
condicionado à prática de ato contrário à lei, à ordem pública, à boa-fé e aos
bons costumes.
Discorrem
que a testadora não estava em plena faculdade de discernimento e que toda essa
fraude foi intentada pela sua companheira, a primeira apelada, Denise,
porquanto tinha acabado de ser internada e medicada com remédios que alteram a
capacidade cognitiva, sendo a perícia do juízo inconclusiva nesse sentido.
Alegam
que a falecida Maria Agnes jamais manifestou qualquer intenção de ter filhos ou
beneficiar a apelada com a totalidade de seus bens, fatos que foram confirmados
pelos depoimentos testemunhais que não foram sequer observados na sentença.
Pugnam
pela reforma da sentença para procedência do pedido.
Preparo
do recurso à f. 553.
Contrarrazões
pela primeira apelada às f. 554 a 565-TJ, e pela segunda apelada às f.
565-TJ-v.
Diligência
determinada por este Relator à f. 575-TJ, cumprida às f. 579 e 580-TJ.
Parecer
da Procuradoria-Geral de Justiça às f. 583 a 585-TJ.
Presentes
os pressupostos de admissibilidade, conheço do recurso.
Trata-se
de ação anulatória de testamento proposta por Armand Jean François Chauvel e
Marie Anne Françoise Henriette Chauvel, genitores da testadora Marie Agnes
Chauvel, apontando no polo passivo Denise Carneiro dos Reis Bernardo e C.A.B. A
pretensão inicial fixou-se na incapacidade da testadora para praticar o ato de
última vontade, motivo pelo qual o negócio jurídico seria nulo, tanto a
disposição dos bens como o reconhecimento de filiação.
Por
sua vez, no recurso de apelação, já trouxeram argumentos novos relativos à
ilegalidade ou à impossibilidade do reconhecimento de filiação em testamento
fora das hipóteses legais elencadas.
Pois
bem.
De
início, poder-se-ia entender como inovação recursal a modificação da causa de
pedir, que, na petição inicial, versava exclusivamente sobre a incapacidade da
testadora, sendo que, já na tese da apelação, argumenta sobre as hipóteses
legais de reconhecimento de filho.
Ocorre
que, a partir do momento que se alegou nulidade do negócio jurídico, atraiu
matéria de ordem pública, consoante disposto no art. 168, parágrafo único, do
Código Civil.
Necessário
um breve escorço histórico da causa para melhor compreensão do convencimento a
que cheguei.
Extrai-se
dos autos que Marie Agnes iniciou um relacionamento homoafetivo com Denise
Carneiro dos Reis Bernardo ainda em setembro de 2009, oportunidade na qual
passaram a conviver sob o mesmo teto (documento de f. 17-TJ).
Em
novembro de 2011, as conviventes decidiram formalizar a união estável mediante
confecção de um contrato particular, conforme documento de f. 19 a 25-TJ, no
qual estabeleceram cláusulas e relacionaram os bens adquiridos na convivência
mútua.
Por
sua vez, em 6/12/2011, as partes formalizaram, mediante escritura pública, a
ratificação dessa união, conforme documento de f. 17 e 18-TJ, adotando-se o
regime de comunhão parcial dos bens descritos no contrato.
Com
relação à doença que levou a testadora a óbito, tem-se que os exames e
prontuários médicos indicam que ela somente foi descoberta na data de
25/6/2012, ou seja, dois dias antes da lavratura do testamento, que ocorreu em
27/6/2012, conforme relato do perito oficial (f. 287-TJ).
Passo
ao exame da alegação de ilegalidade do reconhecimento de filiação, no caso
concreto.
Em
que pesem os argumentos dos apelantes, não se vislumbra um rol taxativo de
possibilidade de reconhecimento de filiação na legislação atual.
Cada
caso deve ser analisado sob o enfoque afetivo, social e familiar.
No
caso em apreço, não se tem qualquer dúvida de que Denise e Marie decidiram se
unir para constituir uma família, considerando-se todos os atos praticados
desde o começo de sua convivência, em setembro de 2009.
Com
efeito, desde o julgamento da ADI 4.277 e da ADPF 132, pelo STF, não há que se
contestar a legalidade da união homoafetiva e sua proteção igualitária com as
demais formas de entidade familiar.
Vale
dizer, então, que, se a união homoafetiva encontra proteção como entidade
familiar na Constituição da República, qualquer ato praticado por seus membros
no sentido de se estabelecer esse vínculo merece a mesma proteção legal.
Partindo-se
dessa premissa, oportuno também pontuar que o STF julgou inconstitucional o
art. 1.790 do Código Civil, na parte em que estabelece a distinção entre
cônjuge e companheiro quanto aos direitos sucessórios (RE 646.721, Rel. p/
Acórdão: Ministro Roberto Barroso, Tribunal Pleno, j. em 10/5/2017, repercussão
geral, publicado em 11/9/2017).
A
partir de referidos julgamentos, tem-se que qualquer norma legal que disponha
sobre o cônjuge deve ser aplicada também ao companheiro, dada a igualdade de
tratamento que deve emanar da lei quanto às formas de união familiar.
Prosseguindo
em novo exame sobre temas de família, à luz da Constituição, com o julgamento
do RE 898.060, o STF fixou, em repercussão geral, a tese: “A paternidade
socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento
do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos
jurídicos próprios”.
Com
relação à tese de fundo dos apelantes, podemos dizer que o reconhecimento de
filiação em testamento é legalmente previsto em várias legislações esparsas do
nosso ordenamento jurídico, como no art. 26 do Estatuto da Criança e Adolescente,
no art. 1º da Lei 8.560, de 1992 (que regula a investigação de paternidade dos
filhos havidos fora do casamento e dá outras providências), e no art. 1.609,
inciso III, do Código Civil.
E
aqui reside a indagação dos apelantes: é legal o reconhecimento de filho dentro
do casamento (ou da união estável), por aquele que não é, biologicamente, o
genitor da criança?
Ou
seja, é legal e possível o reconhecimento de filho por aquele que não gerou a
criança, nem foi o cônjuge ou companheiro a se relacionar com outra pessoa fora
do casamento e a gerar biologicamente o filho?
Certamente
que essa resposta passa pela evolução do instituto do reconhecimento de
paternidade ou maternidade que o direito pátrio vem enfrentando.
Desde
o Código Civil de 1916, o reconhecimento de paternidade exigia a judicialização
da matéria para que se efetivasse qualquer alteração do assento de nascimento.
A
partir da evolução jurisprudencial, e também da medicina, várias outras formas
de gestação foram surgindo, assim como de relações afetivas, tais como as
inseminações artificiais, gestação por substituição (útero emprestado ou
barriga de aluguel) e paternidades socioafetivas.
Um
bom exemplo dessa transformação é a Resolução 1.358, de 1992, que foi editada
pelo Conselho Federal de Medicina para estabelecer as normas técnicas de
reprodução assistida, normas estas que foram sofrendo alterações ao longo dos
anos, inclusive após o julgamento das já citadas ADI 4.277 e da ADPF 132, pelo
STF.
Certo
é que, desde a Resolução 2.013, de 2013, o Conselho Federal de Medicina
regulamentou a reprodução assistida para casais homoafetivos.
Nesse
sentido, questiona-se: têm essas resoluções e regramentos o condão de
solucionar todas as demandas sobre a matéria?
Efetivamente
não.
Conforme
já citei, na vigência do Código Civil de 1916, exigia-se provimento judicial
para reconhecimento de paternidade e alteração do assento de nascimento. Na
nova ordem jurídica, essa exigência tem sido minimizada.
Na
VII Jornada de Direito Civil, realizada pelo Conselho da Justiça Federal, sob
coordenação do Ministro Ruy Rosado de Aguiar, foi aprovado o Enunciado 608, com
a seguinte redação:
“É
possível o registro de nascimento dos filhos de pessoas do mesmo sexo
originários de reprodução assistida, diretamente no Cartório do Registro Civil,
sendo dispensável a propositura de ação judicial, nos termos da regulamentação
da Corregedoria local. Parte da legislação: arts. 1.593 e 1.596 do Código
Civil, Livro IV”.
Por
sua vez, no X Congresso Brasileiro de Direito de Família, realizado em Belo
Horizonte em outubro de 2015, sob coordenação do professor Flávio Tartuce, foi
aprovado o Enunciado 12, do seguinte teor:
“É
possível o registro de nascimento dos filhos de casais homoafetivos, havidos de
reprodução assistida, diretamente no Cartório do Registro Civil”.
Desde
então, em 14/3/2016, o Conselho Nacional de Justiça, por sua Corregedoria
Nacional, editou o Provimento 52, uniformizando o procedimento para
reconhecimento de filhos por reprodução assistida diretamente no Serviço de
Registro Civil.
Atualmente
vige o Provimento 63, da Corregedoria Nacional de Justiça, que trouxe sensíveis
alterações ao normativo anterior, e que, cada vez mais, amplia as hipóteses de
reconhecimento de filiação.
Ora,
se é possível o registro de nascimento direto pelo casal homoafetivo, qual
seria o impedimento para seu reconhecimento via testamento?
Onde
a lei não veda, não cabe ao intérprete fazê-lo.
Consoante
esse entendimento, tem-se o disposto no art. 1.857, § 2º, do Código Civil, que
considera válidas as disposições testamentárias de caráter não patrimonial,
ainda que o testador somente a elas se tenha limitado.
Certo
é que há previsão na legislação sobre a possibilidade de reconhecimento de
filiação mediante testamento, e, por muito menos, a partir dos entendimentos
doutrinários e jurisprudenciais, estabeleceu-se o direito à simples declaração
diretamente perante o Serviço de Registro Civil.
Portanto,
sopesados todos esses fundamentos, tem-se que não há vedação ao reconhecimento
de filiação no ato de última vontade pelo testador, em hipóteses não previstas
expressamente pela legislação atual, mas consolidadas nas relações
interpessoais.
Com
relação à ausência de relação socioafetiva, ou mesmo de reprodução assistida na
forma estabelecida nas Resoluções do Conselho Federal de Medicina, ou admitidas
na medicina, tenho que não pode ser óbice ao reconhecimento realizado.
Hoje,
uma nova realidade bate às portas do Poder Judiciário, a das pessoas que não
têm condições de realizar o procedimento de reprodução assistida em
laboratórios especializados, devido ao alto custo, e utilizam-se de métodos
alternativos, inclusive a tradicional fecundação por relação sexual.
Explico.
As pessoas de baixa renda acabam utilizando do seu ciclo de amizade para uma
reprodução natural, a fim de realizarem o sonho de criar uma família com filhos
gestados por um dos companheiros.
Teria
essa nova realidade o condão de vedar o reconhecimento da filiação entre os
companheiros?
Também
entendo que não.
A
título de exemplo, a matéria já foi submetida ao crivo do Poder Judiciário,
conforme processo julgado no Tribunal de Justiça do Pará (https://g1.globo.com/pa/para/noticia/casal-homoafetivo-do-para-consegue-na-justica-o-direito-de-registrar-crianca-comduas-maes.ghtml
– acesso em 28/8/2018 às 16h:30min).
Destaco
que foi trazida aos autos uma declaração firmada pelo médico Osvaldo Baccarini
Costa, que acompanhou a gravidez de Denise, conforme documento de f. 228-TJ,
atestando que realizou o procedimento de reprodução assistida na paciente após
exaustiva conversação com o casal, em que pese ter utilizado doação de esperma
de pessoa conhecida do casal.
Não
há como negar que a gestação de Denise era também fruto da vontade da testadora
Marie Agnes, a partir do momento do reconhecimento da entidade familiar formada
com a união homoafetiva devidamente formalizada pela escritura pública.
Assim,
as eventuais alegações em contrário dos membros da família da falecida que
residem em outro país, que não tinham contato direto com o casal, ainda que admitidas
como testemunhas, não têm o condão de elidir a declaração de última vontade.
E em
que pese o evento morte da testadora, pelo simples fato de a criança estar
sendo gerada pelo casal, tem-se por implícita a afetividade com o nascituro,
sentimento natural de quem pretende constituir família.
Afastar
a afetividade da testadora pelo fato de não ter tido contato com a criança e a
questão biológica de não ser a gestante ou doadora do esperma, é reduzir,
novamente, o aspecto familiar à questão genética.
Valho-me
dos fundamentos do Ministro Luiz Fux, quando do julgamento do RE 898.060-STF:
“A
família, à luz dos preceitos constitucionais introduzidos pela Carta de 1988,
apartou-se definitivamente da vetusta distinção entre filhos legítimos,
legitimados e ilegítimos que informava o sistema do Código Civil de 1916, cujo
paradigma em matéria de filiação, por adotar presunção baseada na centralidade
do casamento, desconsiderava tanto o critério biológico quanto o afetivo. 3. A
família, objeto do deslocamento do eixo central de seu regramento normativo
para o plano constitucional, reclama a reformulação do tratamento jurídico dos
vínculos parentais à luz do sobreprincípio da dignidade humana (art. 1º, III,
da CRFB) e da busca da felicidade. 4. A dignidade humana compreende o ser
humano como um ser intelectual e moral, capaz de determinarse e desenvolver-se
em liberdade, de modo que a eleição individual dos próprios objetivos de vida
tem preferência absoluta em relação a eventuais formulações legais definidoras
de modelos preconcebidos, destinados a resultados eleitos a priori pelo
legislador” (RE 898060, Rel. Min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, j. em 21/9/2016,
repercussão geral – mérito, publicado em 24/8/2017).
Certo
é que qualquer situação que enseja o reconhecimento da unidade familiar deve
ter a proteção do Estado para consolidação de seus propósitos.
Ademais,
não se pode deixar de lado o princípio maior encampado no melhor interesse da
criança (art. 227, caput, da Constituição da República), além da própria
dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição).
E
ainda que a menor esteja hoje tendo contato com o suposto pai biológico, esse
fato não afasta a possibilidade, inclusive, de registro da paternidade e da
dupla maternidade, como corolário do reconhecimento da multiparentalidade.
Prosseguindo em seu julgamento do RE 898.060-STF, o Ministro Luiz Fux pontua:
“A
superação de óbices legais ao pleno desenvolvimento das famílias construídas
pelas relações afetivas interpessoais dos próprios indivíduos é corolário do
sobreprincípio da dignidade humana. 6. O direito à busca da felicidade,
implícito ao art. 1º, III, da Constituição, ao tempo que eleva o indivíduo à
centralidade do ordenamento jurídico-político, reconhece as suas capacidades de
autodeterminação, autossuficiência e liberdade de escolha dos próprios
objetivos, proibindo que o governo se imiscua nos meios eleitos pelos cidadãos
para a persecução das vontades particulares. Precedentes da Suprema Corte dos
Estados Unidos da América e deste egrégio Supremo Tribunal Federal: RE
477.554-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, DJe de 26/8/2011; ADPF 132, Rel. Min.
Ayres Britto, DJe de 14/10/2011. 7. O indivíduo jamais pode ser reduzido a mero
instrumento de consecução das vontades dos governantes, por isso que o direito
à busca da felicidade protege o ser humano em face de tentativas do Estado de
enquadrar a sua realidade familiar em modelos pré-concebidos pela lei. 8. A
Constituição de 1988, em caráter meramente exemplificativo, reconhece como
legítimos modelos de família independentes do casamento, como a união estável
(art. 226, § 3º) e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus
descendentes, cognominada “família monoparental” (art. 226, § 4º), além de
enfatizar que espécies de filiação dissociadas do matrimônio entre os pais
merecem equivalente tutela diante da lei, sendo vedada discriminação e,
portanto, qualquer tipo de hierarquia entre elas (art. 227, § 6º). 9. As uniões
estáveis homoafetivas, consideradas pela jurisprudência dessa Corte como
entidade familiar, conduziram à imperiosidade da interpretação não-reducionista
do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas
do casamento civil (ADI nº 4277, Rel. Min. Ayres Britto, Tribunal Pleno, j. em
5/5/2011). 10. A compreensão jurídica cosmopolita das famílias exige a
ampliação da tutela normativa a todas as formas pelas quais a parentalidade
pode se manifestar, a saber: (i) pela presunção decorrente do casamento ou
outras hipóteses legais, (ii) pela descendência biológica ou (iii) pela
afetividade. 11. A evolução científica responsável pela popularização do exame
de DNA conduziu ao reforço de importância do critério biológico, tanto para
fins de filiação quanto para concretizar o direito fundamental à busca da
identidade genética, como natural emanação do direito de personalidade de um
ser. 12. A afetividade enquanto critério, por sua vez, gozava de aplicação por
doutrina e jurisprudência desde o Código Civil de 1916 para evitar situações de
extrema injustiça, reconhecendo-se a posse do estado de filho, e
consequentemente o vínculo parental, em favor daquele utilizasse o nome da
família (nominatio), fosse tratado como filho pelo pai (tractatio) e gozasse do
reconhecimento da sua condição de descendente pela comunidade (reputatio). 13. A
paternidade responsável, enunciada expressamente no art. 226, § 7º, da
Constituição, na perspectiva da dignidade humana e da busca pela felicidade,
impõe o acolhimento, no espectro legal, tanto dos vínculos de filiação
construídos pela relação afetiva entre os envolvidos, quanto daqueles
originados da ascendência biológica, sem que seja necessário decidir entre um
ou outro vínculo quando o melhor interesse do descendente for o reconhecimento
jurídico de ambos”.
Portanto, a fatalidade
da ocorrência da morte da testadora antes do nascimento da criança não pode ser
óbice ao reconhecimento da validade de sua declarada intenção de registrar o
nascituro como seu filho, o que representaria, inclusive, ofensa ao princípio
da livre decisão do casal de planejamento familiar (art. 226, § 7º, da
Constituição da República).
Com
relação à incapacidade de testar da falecida Marie Agnes, também não há
elementos nos autos que conduzam a essa conclusão.
De
acordo com o laudo pericial de f. 269 a 296-TJ, o perito oficial concluiu que a
testadora não estava com a capacidade comprometida na data da lavratura do
testamento.
À f.
288-TJ, o perito oficial descreveu:
“O
cerne de toda discussão é o estado psíquico da periciada e sua condição para
testamentar. Impreterivelmente isto deve ser avaliado no momento em que ela o
fez, 27/6/2012. Por aproximação, avalia-se também o período no entorno de tal
data. Durante sua internação na Santa Casa, todas as expressões que possam ter
alguma inferência no estado psíquico são no sentido de que ela estava lúcida. A
única informação no período que poderia ter uma conotação diferente foi a
utilização de grades na cama da mesma. No entanto, esta tem sido uma conduta
adotada pela enfermagem quase de maneira universal, para se evitar quedas do
leito, mesmo em pacientes lúcidos e orientados.
As
medicações até então em uso não apresentavam a capacidade de alterar o
sensório. O único psicotrópico prescrito foi o Lexotan 3mg, um ansiolítico, que
pode desencadear o sono e era administrado às 22 horas, mas que não alteraria o
estado de lucidez no dia seguinte. Caso tivesse algum efeito no dia seguinte do
medicamento, seria claramente visível por todos a sonolência ou queda sensória,
o que seria descrito no prontuário. Nada há nada em relação a isto. Portanto, no
caso em questão, não havia medicações capazes de interferir no discernimento da
paciente.
No
que se refere à doença em si, não há nenhuma descrição, nos livros e artigos
pesquisados, de que a mesma teria o potencial de interferir no sensório ou
prejudicar a capacidade civil da doente”.
Em
seu depoimento na audiência de instrução e julgamento, o perito pontuou que
qualquer alteração relativa à medicação seria visível por uma pessoa leiga,
motivo pelo qual deveria constar do prontuário do hospital, situação não
verificada nos documentos periciados (f. 372-TJ).
E
essa foi uma informação que não foi rebatida pelo assistente técnico dos
apelantes, seja em seu laudo de f. 314 a 318-TJ, seja no depoimento de f.
373-TJ.
Por
fim, há que se considerar que o Tabelião de Notas, no exercício da sua
atividade, tem fé-pública da qual se origina o poder certificante quanto aos
atos que atesta, sendo certo que, na escritura de testamento, declarou ter
promovido todos os atos necessários, certificando-se de estar a testadora em
perfeito juízo e no gozo pleno de suas faculdades mental e psíquica (f. 27-
TJ).
Diante
do exposto, nego provimento ao recurso para manter íntegra a sentença.
Custas,
pelos apelantes, e honorários, que majoro em 5%.
DES.
RAIMUNDO MESSIAS JÚNIOR – De acordo com o Relator.
DES.ª
HILDA TEIXEIRA DA COSTA – Acompanho o judicioso voto exarado pelo em. Des.
Relator, para negar provimento ao recurso, de modo a manter integralmente a r.
sentença, aproveitando o ensejo para declinar os fundamentos que passo a expor.
A
parentalidade socioafetiva consiste em criar-se o vínculo de parentesco não
pelo sangue ou procriação, mas pelo afeto, pelos cuidados, pelo sentimento
paterno-filial, pelo ato de vontade e escolha pelo amor. Vincula-se à filiação
e, consequentemente, ao parentesco pela convivência, e não biologicamente,
constituindo e materializando-se no afeto.
A
doutrina de Luiz Edson Fachin, com muita acuidade, observa, nesse sentido, que
“a verdadeira paternidade pode também não se explicar apenas na autoria
genética da descendência. Pai também é aquele que se revela no comportamento
cotidiano, de forma sólida e duradoura, capaz de estreitar os laços de
paternidade numa relação psicoafetiva, aquele, enfim, que além de poder lhe
emprestar seu nome de família, o trata verdadeiramente como seu filho perante o
ambiente social” (FACHIN, Luiz Edson. Estabelecimento da filiação e paternidade
presumida. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1992, p. 169).
Após
examinar detidamente os autos, verifica-se que a testadora, Marie Agnes,
iniciou um relacionamento homoafetivo com Denise Carneiro dos Reis Bernardo,
aqui apelada, em 2009, tendo formalizado a união estável, por meio de contrato
particular, o qual foi ratificado por meio de escritura pública, segundo
documento juntado às f. 17/18 – TJ, em 6/12/2011.
Deve-se
registrar, ainda, que a testadora fez testamento após a ter conhecimento de que
estava doente, tendo pleno domínio sobre sua vontade, inclusive, para
contemplar, em sua manifestação de última vontade, o reconhecimento de sua
filha, fato que não pode ser desconsiderado, diante da manifestação clara de
sua intenção de criá-la com todo afeto, típico da filiação socioafetiva que
lhes vincularia para toda a vida.
A
em. Min.ª Nancy Andrighi, em seu voto proferido no julgamento do REsp nº
878941/DF, adverte e reafirma a existência do vínculo socioafetivo para se
configurar a filiação jurídica, ao sustentar que:
“[…]
onde há dissociação entre verdade biológica e socioafetiva, o STJ vem dando
prioridade ao critério biológico nas circunstâncias em que a paternidade
socioafetiva desapareceu ou nunca existiu, haja vista que não se pode impor os
deveres de cuidado e de sustento a alguém que, não sendo o pai biológico,
também não deseja ser o pai socioafetivo. A contrario sensu, se o afeto
persiste de forma que pais e filhos constroem uma relação de mútuo auxílio,
respeito e amparo, é acertado desconsiderar o vínculo meramente sanguíneo, para
reconhecer a existência de filiação jurídica”.
De
mais a mais, os Professores Walsir Edson Rodrigues Júnior e Renata Borbosa de
Almeida, em “Direito civil: famílias”, falando de paternidade socioafetiva
descrevem:
“A
socioafetividade ganha importância isolada e passa a corresponder a critério
autônomo de filiação quando ausente o vínculo paterno ou materno já
estabelecido pelo parâmetro biológico ou jurídico. É na circunstância em que a
presunção matrimonial ou a imposição genética do vínculo de descendência não
foram capazes de gerar uma relação afetiva que surge espaço para o
aprimoramento filial. Logo, se a ideia é de acréscimo, não parece haver
obstáculo à defesa, nestes casos, do reconhecimento de uma segunda mãe ou de um
segundo pai socioafetivo.
[…]
Em
síntese: parece permissível a duplicidade de vínculos materno ou
paterno-filiais, principalmente quando um deles for socioafetivo e surgir, ou
em complementação ao elo biológico ou jurídico preestabelecido, ou
antecipadamente ao reconhecimento de paternidade ou maternidade biológica”
(Direito civil: famílias. 2. ed. São Paulo: Atlas, p. 357/358).
Por
derradeiro, endossando, ainda, o judicioso voto prolatado pelo em. Des.
Relator, importante consignar que o objeto do testamento não se limita a
questões de natureza eminentemente patrimonial, à medida que diz respeito,
outrossim, a questões afetas à natureza existencial do testador.
Nesse
passo, apresento o substancioso ensinamento dos juristas Nelson Rosenvald e
Cristiano Chaves de Farias, na obra Curso de direito civil: sucessões, 2. ed.,
da Editora Jus Podium:
“Conquanto
escape ao senso comum vigorante, a simples análise do conceito de testamento
revela que o seu objeto não se restringe à disposição de patrimônio pelo
testador. Efetivamente, é possível a utilização do testamento para a consecução
de outras finalidades, de diversos matizes e naturezas, tenham, ou não,
conteúdo patrimonial. Isso porque a marca registrada do testamento é a
declaração de vontade, como expressão indiscutível da autonomia privada.
Funda-se, por conseguinte, na possibilidade de regulamentação de interesses
particulares, independentemente da gênese patrimonial.
[…]
Exemplificando,
se, por ventura, um testador reconhece a paternidade de um filho não
registrado, mesmo que o testamento venha a ser revogado ou declarado inválido (nulo
ou anulável), perdura o reconhecimento filiatório, plenamente válido e eficaz”
(Curso de direito civil sucessões. 2. ed. Editora Jus Podium, p. 372/373).
Dessa forma, embora não
usual, não há vedação legal ao reconhecimento de filiação socioafetiva por
testamento, principalmente considerando as particularidades dos envolvidos, a
manifestação de vontade e seus efeitos jurídicos.
Em
face do exposto, adiro, in totum, às razões sustentadas pelo robusto voto do
em. Des. Relator, e nego provimento ao recurso, mantendo a r. sentença
recorrida.
Súmula
– NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO.
Fonte: Diário do Judiciário Eletrônico – MG
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